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Mostrando postagens de julho, 2012

Uma Caixa de Botões

Mas de algum modo as pessoas  são eternas. Clarice Lispector Não havia herança. Apenas umas coisas pessoais. A sacola de costuras veio junto. Sabia o que continha. Coisas. A alquimia da perda prematura transformou-as em ícones. Devagar ia alinhando todas sobre a mesa. Cada uma mais sagrada que a anterior. Sentia a mãe por perto. A caixa de botões foi a última. Abriu o trinco com suspense. Ritual. Trouxe de criança. E a temeridade que o sagrado impõe. Ficou extasiada ante o tesouro. Como sempre ficou. Reconheceu as jóias. Uma a uma se encaixando num pedaço do passado. O indicador a revirar, o medo de ser espetado por um alfinete. Pegou alguns botões. Na palma pequena da sua mão o pensamento a carregou. Como quando criança. Um pequeno botão forrado. Tecido estampado, o primeiro ao qual se atentou. Pinçou-o entre o indicador e o polegar. Trouxe-o perto dos olhos no gestual de um ourives. Uma foto sépia. As duas à porta da loja de chapéus. A vitrine mostrando

O Portador

O cromeleque dos Almendres em Évora, umbigo da terra. Rastro do turbilhão. Comum. Não para ele. Tomava horas a olhar. Lisboa. Depois o Atlântico ao largo. Do convés mais alto viu a terra se afastar. Gávea se existisse. Topo da calota. Água, céu. Sem o desenho de uma paisagem. Apenas vento por todos os lados. Dias na imensidão. Longos. Santa Maria, Pinta e Nina. A espuma dos seus cascos ainda marcava.  Cromeleque dos Almendres. Concelho de Évora. Encosta voltada ao nascente, o oriente nos olhos. Quantos mil anos à espera do amanhecer de um solstício de verão. Talvez vã. Nada a considerar a hipótese de tudo aquilo ser descarte de uma civilização ida. Enfim, não era o dia. Não havia magia. Apenas a crença dela. O bastante para preencher. Pensativo, imaginava quem poderia ter pisado o mesmo chão que ele. Acabou por se juntar à multidão. Anônimo.  Descoberta acidental. Comentário no cromeleque. Uma tasca em Évora. Comida alentejana, bom vinho. Acepipes. A perdição nas sobremesas. Mesa do

Uma Certa Senhora

"Bendito seja eu por tudo o que não sei, gozo tudo isso como quem sabe que há o sol" Fernando Pessoa Ava Gardner. Vestido negro. Justo. Um pouco acima dos joelhos. Decote sem alças. Jóia no colo. Designer caro. Sapatos nem altos nem baixos alongando o perfil. Cabelos presos deixando a impressão de algum desarranjo. A quebrar a figura perfeita. Pele delicada. A maturidade plena no corpo. Olhos morenos de jabuticaba. Mulher pintada por Goya. Rosto sereno. Nu. Parecia não dar conta da vida transbordando no corpo da mulher. Elegância. Ele fazia questão. Ela ia além. Sabia o que estava provocando naquela noite. E das consequências. Mas não podia deixar de sentir. O auge dos seus trinta e tantos anos carregava a juventude insolente. Ele não atinava, não entendia isso. Mesmo a mais discreta roupa trazia graça àquele corpo. Natural, inevitável. Ao entrar foi medida. Alto a baixo. Olhares traíram olhos. Sentou-se. Cruzou as pernas bem torneadas. Mas

A Pensão da Rua Jandaia

Alma escancarada. Tênis encharcado. Apenas um movimento perdido no cenário desolado. Ninguém a condescender. Sequer a compaixão. Noite. Silêncio urbano. Inverno. Mesmo às vésperas da primavera. Chuva fina roubando a proteção das marquises. Vento perdido pelos vãos dos prédios. Ar denso. Desolação. Perspectiva da Avenida Paulista nas luminárias do posteamento. Diluídas no reflexo do asfalto molhado. Esticando a distância. Iludindo. Cenário irreal. Como foram irreais aqueles momentos. Aquelas palavras. Andar por inércia. Pensamento estanque por um negrume. Uivo agourento a preencher o breu. Do nada. A bloquear. Açoite no corpo. Vulto. Então viu seu vulto a vagar. Para o inferno não basta a morte. E há um só caminho. Curto, acre, cáustico. Talvez. Pior o frio desolado da desesperança. Fosse purgatório se poderia negociar. Mas o delírio da perda impõe extremos. Inoculado o veneno, o insuportável assoma. Depois a trilha maldita. Paisagem de escombros. Trama de raízes a tranc

O Caminho

Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. Cecília Meireles A tropa se deparou com a silhueta negra. À direita, o caminho por um vão da serra. Parnaíba à esquerda. As ruas do comércio, dos cabarés do meretrício. Conforto de vida mundana. De um teto. Mesmo nas camas duras da pousada. No pelego sobre as tábuas brutas do assoalho. Mas longe do chão frio da serrania. O tropeiro buscou a trilha pelo rio da Canguera. Chão de poucas manadas. Acima da várzea úmida, do atoleiro da cheia, da mata ciliar do rio encravado. Abaixo do solo seco, duro. Do topo varrido pelo vento. Lavado pela chuva. Cascos à meia encosta pelo macio da terra. Piso estreito. Por valas, barrancos, pirambeiras. Vez ou outra a clareira. A se sobressair entre alas, sombras. E sempre o aguaceiro interminável. O viço profuso da vegetação na chuva. Exuberância a oprimir. A diluir o caminho. Embrenhando o homem. Mata a tomar os sentidos. Ce

O Inca

El joven Atahualpa, estambre azul,/ árbol insigne, escuchó al viento/ traer rumor de acero. Era un confuso/ brillo y temblor desde la costa,/ un galope increíble/ -piafar y poderío- de hierro y hierro entre la hierba./ El Inca salió de la música/ rodeado por los señores. Las Agonias-Pablo Neruda Descia. Rua fria de New York. Melhor, seguia a planura das ruas. Retas até onde os olhos podiam enxergar. O vapor do Metrô soprado das grades no chão criava a bruma. Costurava a diversidade. Babilônia. Ruelas, becos estreitos. Nódoas de umidade na cal da pintura. Verde água escorrida, reboco. Noites úmidas, pegajosas. Cômodos insanos. Mofo a arder as narinas. Janelas fechadas, tementes. Mercadores. Gente aos tropeços. Até o ocaso. Houvesse luz e Babilônia se prostituiria todo o tempo. Onde corresse a vida. Nas tabernas. Até o cerrar das portas. Corpos tomados pelas mesmas mãos da comida. Cheiro azedo da bebida entornada. Luxúria a soldo. Bacanal. Final de congestionamento.

O Olhar

                                  Chuva. Água permeando nos cabelos ralos. Incomodava. Parou à beira da pista. Caminhada longa, a parecer sem fim. Passos mecânicos. A cabeça trazia o inferno. Pensava em círculos sem espaço para concluir. Nem trégua. Um tormento não substituiu o outro. Foi somado. Clarão da vila no topo. Luzes minguadas, opacas na névoa. O negrume entre eles. Distância em olhos ansiosos a parecer maior. Medida entre a resignação, a obstinação. Não bastasse, a rodovia. Um fio de lanternas vermelhas, muralha. Parecia eterna. De súbito atravessou pelos restos barrentos do aguaceiro.  Estrada vicinal. Asfalto remendado. Traiçoeira. Então o acidente. No deserto daquelas horas restava a sorte. Iluminasse um farol, o corpo sem vida na lama. Esconso. Sangue no batom carmim. Escorriam juntos. Uma jaqueta cobria o peito desnudo.  A pensão avançava na calçada antes da rua se perder na escuridão. Formava um canto. Passou por ela ressabiado. Rente à parede, furtivo. A políc

Casablanca

      Ingrid Bergman em CasaBlanca ou  Michelle Pfeiffer, a Suzie de Bakers Boys, de boca rubi, rosto alvo, azul, vestido vermelho no corpo perfeito e makin' whoopee sobre o piano. Talvez Rosa Púrpura do Cairo. O lhar fixo de Cecília na tela. Tantas sessões de cinema. Chama avivada em cada. Juntar o fascínio de um menina do interior...   "Jamais réel e toujours vrai. [Nunca real e sempre verdadeiro]" Rimbaud   Paredes. Distância dos braços abertos. Teto rente. Cela. Pressão da angústia. O arfar, arritmia. Corpo alquebrado na cama. Extenuado, sem posição. Lençol úmido, amarfanhado. Madrugada longa, arrastada. Quase manhã. Sono falso a cerrar as pálpebras. Sobressaltos. Nada além da espera do dia. Abriu a janela. Ainda o ar da noite fria. O outro lado da rua, parede. Ruído interminável da avenida, espremido. Corredor de prédios a ampliar, campana. O silêncio confuso da noite. Procurou a estante. Folheou. Ansiedade, texto. Conflitantes na leitura.