El joven Atahualpa, estambre azul,/ árbol insigne, escuchó al viento/ traer rumor de acero.
Era un confuso/ brillo y temblor desde la costa,/
un galope increíble/ -piafar y poderío-
de hierro y hierro entre la hierba./
El Inca salió de la música/
rodeado por los señores.
Las Agonias-Pablo Neruda
Descia. Rua fria de New York. Melhor, seguia a planura das ruas. Retas até onde os olhos podiam enxergar. O vapor do Metrô soprado das grades no chão criava a bruma. Costurava a diversidade.
Babilônia. Ruelas, becos estreitos. Nódoas de umidade na cal da pintura. Verde água escorrida, reboco. Noites úmidas, pegajosas. Cômodos insanos. Mofo a arder as narinas. Janelas fechadas, tementes. Mercadores. Gente aos tropeços. Até o ocaso.
Houvesse luz e Babilônia se prostituiria todo o tempo. Onde corresse a vida. Nas tabernas. Até o cerrar das portas. Corpos tomados pelas mesmas mãos da comida. Cheiro azedo da bebida entornada. Luxúria a soldo. Bacanal. Final de congestionamento. Rendição do dia. Vai-e-vem. Passos atrasados, apertados. Bares cheios. Burburinho. O limiar da troca.
Mariposas no luzeiro. Outra gente. De onde não sei. Cigarro, perfume doce, acre da urina atrás de pilhas do lixo. Vida espremida entre sarjetas, paredes. Mesma cidade, outro cenário.
Arranha-céus. Redoma de luz a velar o infinito. O cinza se desfazendo em cores da iluminação. Interminável rotina do efêmero. Se alguém perguntasse em que momento tudo se acomodaria não teria resposta.
A antropóloga caminhava. Sem fazer parte da cena. Espectadora. Permissiva, tolerante. Questão de um ponto de fuga. Jamais coadjuvante, sequer cúmplice. Centralidade. Própria de cada umbigo.
Antes de dobrar a esquina olhou sobre os ombros. Gesto premeditado. Preocupação estampada. Como toda antes do proibido. Conhecia o lugar. Beco. Um portal. O rumor da avenida ressonava. Luminoso esmaecido perdido numa parede lateral. Bar. Ar viciado, quente. Bafo. Azedo, suor. Vozerio. Apertou-se entre as pessoas. Arregalou os olhos até se ambientarem. Quis ser parte.
Medo. Nunca havia sentido tanto. As fotos na bolsa abraçada ao peito. Precisava da sensação de que estavam protegidas. Adrenalina. Sabia que tudo iria mudar. Alterar a rotina insípida, dias previstos. A descoberta veio como desarranjo da mesmice. Jamais imaginaria perder o controle. Acaso a manipular.
Assédio de um bêbado. Barman mal encarado, barba de um dia. Filme policial de segunda. Acendeu o cigarro. Cinzeiro cheio. Desabando. Podia pensar sem estar pressionada. Ou não pensar. Abriu as fotos na mesa do canto. A que restava. Espremida. Luz de um abajur brega. Abstraiu-se da algazarra. Olhos fixos no nada. Montando, remontando situações. Enquanto o conhaque permitiu.
Talento reconhecido. Olhar agudo, crítico, nem sempre ponderado. A descobrir detalhes, minúcias. Nada de estereótipos, trejeitos espirituosos para conquistar um lugar. Comportamento arredio nascido de preconceitos. Jeito acuado.
Carregava a vida assim. Lugares baratos, mundanos, discretos. Preferia ao verniz da moda. Não que gostasse dos sórdidos. Onde mais poderia contemplar, desarrumar os sentimentos, o pranto. Nem censura por uma bebida a desafogar a alma.
Insinuaram-se. Não era uma bela mulher, talvez exótica. Mestiça de fronteira. Quarenta anos, biótipo sul americano, pele morena, ancas largas. Jabuticabas, olhos amendoados, negros como os cabelos presos, lábios carnudos. Ele passava dos cinqüenta. Comum, olhar fosco. Rosto vincado. Desalinhado. Jamais entenderam a compulsão dessa atração. Talvez o encanto num detalhe. Sorriso desenhado num canto de boca. Raro. A cativar no momento certo.
Babilônia. Ruelas, becos estreitos. Nódoas de umidade na cal da pintura. Verde água escorrida, reboco. Noites úmidas, pegajosas. Cômodos insanos. Mofo a arder as narinas. Janelas fechadas, tementes. Mercadores. Gente aos tropeços. Até o ocaso.
Houvesse luz e Babilônia se prostituiria todo o tempo. Onde corresse a vida. Nas tabernas. Até o cerrar das portas. Corpos tomados pelas mesmas mãos da comida. Cheiro azedo da bebida entornada. Luxúria a soldo. Bacanal. Final de congestionamento. Rendição do dia. Vai-e-vem. Passos atrasados, apertados. Bares cheios. Burburinho. O limiar da troca.
Mariposas no luzeiro. Outra gente. De onde não sei. Cigarro, perfume doce, acre da urina atrás de pilhas do lixo. Vida espremida entre sarjetas, paredes. Mesma cidade, outro cenário.
Arranha-céus. Redoma de luz a velar o infinito. O cinza se desfazendo em cores da iluminação. Interminável rotina do efêmero. Se alguém perguntasse em que momento tudo se acomodaria não teria resposta.
A antropóloga caminhava. Sem fazer parte da cena. Espectadora. Permissiva, tolerante. Questão de um ponto de fuga. Jamais coadjuvante, sequer cúmplice. Centralidade. Própria de cada umbigo.
Antes de dobrar a esquina olhou sobre os ombros. Gesto premeditado. Preocupação estampada. Como toda antes do proibido. Conhecia o lugar. Beco. Um portal. O rumor da avenida ressonava. Luminoso esmaecido perdido numa parede lateral. Bar. Ar viciado, quente. Bafo. Azedo, suor. Vozerio. Apertou-se entre as pessoas. Arregalou os olhos até se ambientarem. Quis ser parte.
Medo. Nunca havia sentido tanto. As fotos na bolsa abraçada ao peito. Precisava da sensação de que estavam protegidas. Adrenalina. Sabia que tudo iria mudar. Alterar a rotina insípida, dias previstos. A descoberta veio como desarranjo da mesmice. Jamais imaginaria perder o controle. Acaso a manipular.
Assédio de um bêbado. Barman mal encarado, barba de um dia. Filme policial de segunda. Acendeu o cigarro. Cinzeiro cheio. Desabando. Podia pensar sem estar pressionada. Ou não pensar. Abriu as fotos na mesa do canto. A que restava. Espremida. Luz de um abajur brega. Abstraiu-se da algazarra. Olhos fixos no nada. Montando, remontando situações. Enquanto o conhaque permitiu.
Talento reconhecido. Olhar agudo, crítico, nem sempre ponderado. A descobrir detalhes, minúcias. Nada de estereótipos, trejeitos espirituosos para conquistar um lugar. Comportamento arredio nascido de preconceitos. Jeito acuado.
Carregava a vida assim. Lugares baratos, mundanos, discretos. Preferia ao verniz da moda. Não que gostasse dos sórdidos. Onde mais poderia contemplar, desarrumar os sentimentos, o pranto. Nem censura por uma bebida a desafogar a alma.
Insinuaram-se. Não era uma bela mulher, talvez exótica. Mestiça de fronteira. Quarenta anos, biótipo sul americano, pele morena, ancas largas. Jabuticabas, olhos amendoados, negros como os cabelos presos, lábios carnudos. Ele passava dos cinqüenta. Comum, olhar fosco. Rosto vincado. Desalinhado. Jamais entenderam a compulsão dessa atração. Talvez o encanto num detalhe. Sorriso desenhado num canto de boca. Raro. A cativar no momento certo.
Gramado triangular do Bowling Green. Vestíbulo do National Museum of the American Indian. Arte pré-colombiana. O que restava da urna funerária de Cotia sobre a mesa. Dicotomia de informações.
São Paulo nascia da noite quando o avião desceu em Congonhas. Decô do Hernani Penteado, nave que o casario da cidade abraçou. Seguiu no congestionamento do fim da manhã. Atraso creditado ao acaso. Barcellos, o historiador português.
Biblioteca Nacional de Lisboa. Sentaram-se no café do saguão do aeroporto. Perderam o tempo trocando história. América do Sul.
Ouviu dos povos da floresta. Da mística gente karai-yo, guaranis dizimados com complacência dos beneditinos. Ainda no caiapiã quando tudo aconteceu. Do Piabiyu fechado por determinação da coroa portuguesa. Medo dos espanhóis, maior que preservar Tordesilhas. Linha mentida numa mesa da Europa. Portugal no oriente, Espanha no ocidente. Pouco importou aos arredios paulistas. Indolentes. A viver como gente nativa. Havia a muralha. Eles estavam no topo. Pena, a morte. Quem iria aplicar.
Bairro da Liberdade. Cortiço. A lavadeira da última casa. Bisavó. Viela Conde de Sarzedas. Nome também da rua. Ladeira íngreme. O avô corria ao riacho do baixio, várzea. A memória estava estampada no bairro. Pobre. Aluguéis baratos a abrigar imigrantes. Aprendeu a cultivar a memória com os japoneses. À toa. Eram seus cenários,seus dias. Eles apenas o ensinaram a ler.
Um dia as avenidas de toda a cidade rasgaram o vale. Paisagem de guerra. Arrogância dos novos tempos. A cidade virou um grande negócio.
A rua. Jamais a mesma na troca de olhares. Ou em diferentes momentos. A cidade na dinâmica do seu pensamento. Como poucos compreendiam. A da memória importava. Guardou. Aprendeu com a que se transformou. Cada signo, cada movimento. Um grande tabuleiro. Impôs-se.
Capital do mundo. Generosidade obscena do poder, submissão hipócrita dos que se renderam. Nas estradas de Babilônia a riqueza. Ganância, devassidão, corrupção. Mais que amealhar. Obsessão. Possível apenas a um coração estéril. Outro não suportaria.
Achados de um sambaqui. Embalagem de produtos artesanais. Não diferenciariam na alfândega. Faltava o conhecimento. Seguiu junto. A outra ponta poderia servir aos seus interesses. Desembarque. Recibo de entrega. Mulher desinteressante. Avental caqui, gorro. Cuidado extremado. Diferente do Brasil. Peças mutiladas, descuido.
Lógica comercial do toma-lá-dá-cá. Artesanato vulgar nas cidades turísticas.
Café do museu. Outono gelado como quiseram que fosse. Sentou-se ausente de problemas. Sem precisar ficar atento. Um homem comum numa mesa de canto. A balconista apontou. Seguiu o dedo em riste. Levantou a cabeça. Sem pressa. A mesma figura do aeroporto. Apresentaram-se. Mascate de objetos quaisquer, antropóloga. Foram protocolares.
Sempre impressionou tamanha cidade perdida nos confins do Sul. Seguiu de táxi. Prédio antigo da Conselheiro Furtado. Escadaria de mármore puído, corredor na penumbra, lambril de nogueira a meia altura do pé direito. Porta com postigo. Mancha de incontáveis mãos à altura da maçaneta.
Ela entrou. Penumbra da cortina cerrada. Ar viciado, mofo. Rosto escondido na sombra. Pegou as fotos. Se não podia ler os olhos na silhueta, a respiração dele traiu. Presença incômoda. Sabia. Provocava. O vestido colado, o corpo esguio do salto. Cabelos meio que soltos meio que presos. Desleixo premeditado.
Encontraram-se no Brasil. Fazia um bom tempo. Ela lia melhor o tupi-guarani. Entenderam-se. Margens do São Francisco, Lagoa Santa. Um a procurar negócio, outra a história. Gaiola do Velho Chico. Amantes, não sócios. A carranca não afastou o espírito da discórdia. Havia muitas cartas na mesa.
Vaso grosseiro como tantos. Engobo, pintura vermelha, fundo branco, decoração ungulada, unha no barro fresco. Noites de quebra-cabeças. Clara a conexão inca-tupi-guarani. Local na etiqueta do museu. Caiapiã. Aldeia na colina a vigiar os banhados do rio Cotia.
Piabiyu, caminho transcontinental pré-colombiano, noroeste-sudeste. A Via Láctea, o Caminho da Anta riscando na topografia o Caminho da Terra Sem Mal dos tupis-guaranis, dos incas, de tantos outros. No céu além do arco do horizonte. Na terra o limite da beira do Atlântico. De resto a imaginação.
A direção noroeste-sudeste era a principal. O inca tomou a que varava para São Vicente. Não resistiu ao mal. E tão próximo do Atlântico. O xamã se perdeu dos espíritos. Temente gravou a tatuagem no barro fresco do avesso da urna. Risco a fogo no peito daquele homem estranho. Sinal ritualístico, talvez, passagem para outra vida.
A antropóloga entendeu o espanto. Vestígios de um inca, não de um tupi-guarani. Mas havia os detalhes. O desenho no barro fresco surgiu da argila queimada. Não era acidental, decorativo. Traçado com apuro.
Tardes de Lisboa. Não foram vãs. Saber do Piabyu esclareceu. O caminho ancestral uniu as pontas. Bowling Green não dormiu. Os desenhos vararam noites. Escalas redimensionadas. Na biblioteca a tela do computador mostrou o traçado. Precisão intrigante de uma vista aérea impossível. Como os geóglifos. Quis o destino fosse dela o achado. Enigma lido. Piabiyu era referência, a rota, caminho a trazer o inca. Outras linhas conduziam ao noroeste. Atravessavam a fronteira.
Apaixonou-se por São Paulo. Encanto maior que a planura insular de New York, dias frios, umidade. Clima subtropical. A natural proximidade das pessoas.
O homem se levantou. O rosto vincado na luz, sisudo. Sorriso de comerciante. Não cumprimentou. Quis ouvir sem emoção, indiferente. Enfim, concordou com a empreitada. Nada de romantismo piegas. Gente de bar de beco.
Balançou. Medo de se trair. Havia percebido a inquietação ao telefone. Ela conhecia o tipo. Não iria ceder. Disfarçaria cada sentimento. Mesmo sem saber qual estava vivo.
Recepção do hotel. Nos olhos dele não havia outra coisa. Quis ser fria. Apenas contou. Dividiu o segredo de Paititi, a cidade de Inkarri na selva ao leste da Cordilheira. Quantos a procuraram, quantos sequer retornaram. Acertariam no escritório. Outras coisas não foram ditas. Poderiam se quisessem. Trocaram apenas uma prosa rala. Esconderam os olhares. Esperou uma iniciativa. Ela não se alterou.
O divortium aquarium. Bacia amazônica e platina a nascerem quase das mesmas águas. Os planos inclinados, rampas suaves a iludirem. A sensação de serra sobre o copado. Bordas, araxás. O avião pousou em Rio Branco. Perdida naquela selva imensa.
Nada de safáris, Hollywood na África. Um grupo discreto de turistas. Sequer o drama bandeirantista das febres, ataques de tribos como a tantas expedições. Animais exóticos ou flora estranha, nada. Paraíso de rios caudalosos, árvores gigantescas, natureza exuberante. A distância da civilização tecnológica sem a imaginação das crendices.
A natureza não demarcou. Chão coberto pela floresta densa. Um rio de tantos na imensidão separaria um país. O Madeira corria soberbo, indiferente ao papel de fronteira. Mundo único, indivisível.
A natureza não demarcou. Chão coberto pela floresta densa. Um rio de tantos na imensidão separaria um país. O Madeira corria soberbo, indiferente ao papel de fronteira. Mundo único, indivisível.
Beleza a mitigar o cansaço. O cenário a esconder a distância. Não o desenho. Fim de dia. Tanto vencido. Corpo dolorido a implorar repouso. A topografia a se impor. O enrugar do planalto se preparando para a cordilheira. Mancha negra no horizonte.
O anoitecer pareceu rápido. Silêncio no astral, o som crescente da floresta, águas despencando. No negrume a mistura do copado ao céu. Vaga-lumes, estrelas a voarem juntos. Inferno de carapanãs, piuns, do bafo quente da floresta tropical. Indolência.
Próximos demais. Se Lagoa Santa os distanciava não foi suficiente. Foram cedendo sem perceberem. Esqueceram o que queriam que parecesse. Entregaram-se descuidados. Nem juras, nem promessas.
A negação da razão depois do beijo casual, inevitável. Mãos ansiosas, palmas suadas. Desejo liberto. O romper do pudor. Insolência animal. Macho e fêmea. Caninos na jugular. Boca sugando as entranhas. Haveria alma se satã antes não a tomasse. Apenas corpos cansados depois.
Estranho amor. Distante, atemporal, sem exposição, sem entrega. Nada a prender a relação. Como os negócios. Mas ávido. Incandescente. Amoral.
Águas claras nascidas do gelo andino. O sinal nas margens, a trilha desenhada. Caminho buscado por Martim Afonso de Souza, por Orellana depois. Parecia demarcado. Paititi surgiu orgânica na trama do cipoal, envolvida pela hiléia exuberante. A muralha cingia a elevação fechada pela rocha vertical. A entrada ao pé do penedo. A galeria, o salão. A fornalha perdida na borra surpreendeu. O ferro da hematita.
Ouro, prata. Adornos de castas, discriminação. Maleáveis como o caráter humano. Ferro. Frio como as armas. Estigmas do poder. Corrupção e ação. Política e trabalho. O segredo correu o Piabiyu, os contrafortes da cordilheira, os ouvidos para quem a riqueza era o ouro apenas.
A cena, o transpor dos muros. A cidade em ruínas deixou nítida a imperfeição do seu plano de vida. O acaso elementar, fundamento desprezado. Noite vadia. New York. Hotel do piso superior. Bar ordinário. Mesa de canto. Ela o reconheceu. Estranhou o encontro. Gostou. Ele também preferia que lhe fossem indiferentes. Menos ela.
A eternidade do vôo. Quase voltou em outro. Não podia. Negócios. Tensão. Qual tempo para alguém. Nunca se permitiu. Não sabia que podia. Rotina. Cobranças. Datas perdidas. Jantar esquecido. Destemperos. Fim da excitação a espera de uma noite premeditada. Mas desconhecia a cumplicidade.
A porta abriu. Estava velado na sombra. Luz voltada para aqueles olhos negros, indevassáveis. O vestido, o porte, o encanto. O perfume preencheu a sala. Não leu os documentos. Não quis. Levantou-se. Um gesto que fosse. Ela continuou impassível.
A floresta silente. Contemplava imerso. A vida bastava viver. A regra aprendida entre pilares de viadutos valia para o amor. Apenas se deixou.
Martim Afonso de Souza enviou uma expedição à prata do Potosi, ao ouro do Império Inca. Sequer podia imaginar num desenho a oferta de Atahualpa. Uma aliança contra Piçarro. Tão próximos perdidos numa colina do Caiapiã.
Magia. Destino atemporal a dispor Atahualpa, a cobiça de Martim Afonso de Souza. Como entender a razão do acaso? Quase quinhentos anos. No tempo do homem.
Havia duas pessoas perdidas em Babilônia...
O anoitecer pareceu rápido. Silêncio no astral, o som crescente da floresta, águas despencando. No negrume a mistura do copado ao céu. Vaga-lumes, estrelas a voarem juntos. Inferno de carapanãs, piuns, do bafo quente da floresta tropical. Indolência.
Próximos demais. Se Lagoa Santa os distanciava não foi suficiente. Foram cedendo sem perceberem. Esqueceram o que queriam que parecesse. Entregaram-se descuidados. Nem juras, nem promessas.
A negação da razão depois do beijo casual, inevitável. Mãos ansiosas, palmas suadas. Desejo liberto. O romper do pudor. Insolência animal. Macho e fêmea. Caninos na jugular. Boca sugando as entranhas. Haveria alma se satã antes não a tomasse. Apenas corpos cansados depois.
Estranho amor. Distante, atemporal, sem exposição, sem entrega. Nada a prender a relação. Como os negócios. Mas ávido. Incandescente. Amoral.
Águas claras nascidas do gelo andino. O sinal nas margens, a trilha desenhada. Caminho buscado por Martim Afonso de Souza, por Orellana depois. Parecia demarcado. Paititi surgiu orgânica na trama do cipoal, envolvida pela hiléia exuberante. A muralha cingia a elevação fechada pela rocha vertical. A entrada ao pé do penedo. A galeria, o salão. A fornalha perdida na borra surpreendeu. O ferro da hematita.
Ouro, prata. Adornos de castas, discriminação. Maleáveis como o caráter humano. Ferro. Frio como as armas. Estigmas do poder. Corrupção e ação. Política e trabalho. O segredo correu o Piabiyu, os contrafortes da cordilheira, os ouvidos para quem a riqueza era o ouro apenas.
A cena, o transpor dos muros. A cidade em ruínas deixou nítida a imperfeição do seu plano de vida. O acaso elementar, fundamento desprezado. Noite vadia. New York. Hotel do piso superior. Bar ordinário. Mesa de canto. Ela o reconheceu. Estranhou o encontro. Gostou. Ele também preferia que lhe fossem indiferentes. Menos ela.
A eternidade do vôo. Quase voltou em outro. Não podia. Negócios. Tensão. Qual tempo para alguém. Nunca se permitiu. Não sabia que podia. Rotina. Cobranças. Datas perdidas. Jantar esquecido. Destemperos. Fim da excitação a espera de uma noite premeditada. Mas desconhecia a cumplicidade.
A porta abriu. Estava velado na sombra. Luz voltada para aqueles olhos negros, indevassáveis. O vestido, o porte, o encanto. O perfume preencheu a sala. Não leu os documentos. Não quis. Levantou-se. Um gesto que fosse. Ela continuou impassível.
A floresta silente. Contemplava imerso. A vida bastava viver. A regra aprendida entre pilares de viadutos valia para o amor. Apenas se deixou.
Martim Afonso de Souza enviou uma expedição à prata do Potosi, ao ouro do Império Inca. Sequer podia imaginar num desenho a oferta de Atahualpa. Uma aliança contra Piçarro. Tão próximos perdidos numa colina do Caiapiã.
Magia. Destino atemporal a dispor Atahualpa, a cobiça de Martim Afonso de Souza. Como entender a razão do acaso? Quase quinhentos anos. No tempo do homem.
Havia duas pessoas perdidas em Babilônia...
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