Pular para o conteúdo principal

A Professora



Em sua essência a vida é monótona. A felicidade
consiste pois numa adaptação razoavelmente exata
à monotonia da vida. Tornarmo-nos monótonos
 é tornarmo-nos iguais à vida; é, em suma, viver
plenamente. E viver plenamente é ser feliz.
 
Fernando Pessoa, in 'Reflexões Pessoais'


1941. Já não era tão menina. Quase dezenove. Pequena, franzina. Nada além. Cabelos negros, lisos, repartidos ao meio, rentes ao queixo. Moldura castanha para os olhos enormes, negros, assustados, a parecer preocupados com o que a vida estava a lhe trazer.


Diploma de professora. Começo de carreira. A Sorocabana era o caminho entre o amparo da família e aquele cafezal. Quase quinhentos quilômetros da capital. Longe. Um dia ou mais de viagem. Vila pequena, graciosa. Palmital, se fosse ali. Mas ainda havia outros quase dez quilômetros além da vila. Numa charrete, no lombo de um burro, tanto fazia. Fazenda de café, Água da Canela.


Espanhóis da Andaluzia. Dona Concepción e as filhas todo o fim de semana limpavam a casa de maneira desmedida. Os lençóis de sacaria eram alvos como suas almas. A faxina, um exercício de purificação. Ao Seu Gallardo, as terras.  Rispidez rústica dos homens do campo que convivia com a mansidão escondida no peito. A Andaluzia deles ficou nas histórias e o tempo trocou a verdade pela lenda.


Tempo que se arrastava. Indiferente por lá. Mesmo com o castigo da guerra na Europa. Da Paris alemã. Da estreia de "O Grande Ditador" de Chaplin. Sequer se importavam tanto. Nem com a guerra, nem com Chaplin. Carlitos era apenas um palhaço. Getúlio sim. Tinha o preço do café nas mãos.


O pai a trouxera.  Corações angustiados na despedida da estação. Ele quase voltou. Ela quase partiu. Não quis. Tinha aprendido a enfrentar as adversidades. Seu pai fora o mestre da sua alma pertinaz.


Por desencargo de consciência pediu ao fazendeiro que olhasse a filha. O fazendeiro foi solícito, educado. Mesmo porque as filhas eram parte da própria fazenda. No campo, nos afazeres domésticos. A professora podia ser qualquer. Mais uma entre tantas que haviam passado por lá.


A vida seguiu. Não se julgava se a escola estava lá pela consciência social do fazendeiro ou pela sua medida de poder na região. Talvez pelo que rendesse. O governo pagava a professora que pagava o fazendeiro pela hospedagem. Nada mais além da comida. Conviveria com suas filhas na casa grande num quarto arejado. Um professor causaria incômodo.


A escola ficava sequer a um quilometro. Reboco caiado, telha vã. Não havia desconforto. Mesmo com a água do poço e a latrina tosca de madeira sobre um buraco no solo. Mesmo com o chão em tijolos faceados. Não era diferente do terreiro em chão batido que a erva disputava com o solo vermelho.


Uma menina protegida pela família sem jamais arredar os pés de casa. Da vida urbana. Nada além da caminhada até sua escola. Nada além das férias na cidade da avó. De repente o desconhecido. Viagem sideral, mergulho nas fossas profundas do oceano. O encanto se partindo. A metamorfose da menina. A aflição da mulher que estava vindo. O medo do que iria acontecer tão longe do amparo. Talvez disfarçado pela excitação do novo. A leveza do dia, a angústia da noite. Os extremos num conflito. Divagava quando tomou o trem.


As pessoas eram parte do cenário rústico. Pertenciam a ele. A colônia de alemães. As crianças de olhos azuis na escola. Os chapéus, lenços, roupas protegendo a pele alva, europeia do sol cáustico. Os passos sempre se perdiam no farfalhar das folhas do cafezal. O retinir das enxadas, dos cascos, das rodas da charrete, do gemer de um carro de boi. O cantar nostálgico da colônia. E a paisagem sem volumes penteada pelas alas. Vastidão que não aconchegava a alma. Um sem fim.


Havia morado em Santos, na Capital. Conhecia além daquela trilha batida. O chapéu de palha insistiu em cobrir da sua alma também. Foi sem querer. Mas reagiu. Não aceitou pertencer ao cenário.
 
Dez dias depois de ter assumido a escola o pai reapareceu. Desta vez com a irmã mais nova. A escola ao lado, na fazenda Esperança, precisava de uma professora. Talvez a solidão fosse menor pensou o pai. Não foi. Somaram os mesmos sentimentos. Nada além do que o coração se queixava. Nada além dos dias iguais.  Até as sombras, as nuvens. Isso quando se encontravam nos fins de semana.


As reuniões de trabalho na vila eram festa. Conheceram Luisinha, professora de outra fazenda. Os pais, Júlio e Assunta as receberam. Quando conseguiam, frequentavam a cidade na casa que as havia recebido.


O vai e vem entre a casa e a escola normal. O pão monótono de cada dia. As férias na pequena e rural Cotia. Vila de um baile eventual, do footing na rua principal dividida com a estrada. O pai severo sempre atento. A distância de tudo isso trazia a expectativa, gente pra se descobrir, desarranjo da mesmice. Mesmo não sendo liberdade.
 
No final de um dia a irmã procurou Águas da Canela. Ela se assustou. Nunca isso havia acontecido tão tarde. Recolheu-a no quarto. Abraçaram-se. Com o coração de duas irmãs naquela solidão.


Pediram ao fazendeiro que aprontasse a charrete e seguiram à Vila mesmo com a desaprovação dele.
 
No horizonte, a luz que restava. Caminho escuro. Passos as acompanhavam pelas laterais, por dentro do cafezal. Estavam caladas. Uma para não assustar a outra. Nunca uma estrada tão longa. Nunca tanto a demora. Seguiam abraçadas.


O caminho do burro e o trote calmo não denunciava qualquer perigo. Apenas as almas assustadas das meninas.
 
Na vila alguns pontos de luz. Seguiram até a amiga que esperava na varanda. Na silhueta das janelas os pais. Gallardo logo chegou. Tinha ido atrás das meninas com o zelo de um pai, com a promessa do cuidado.


Todos se reuniram naquela sala grande. Aguardaram as notícias.
 
O movimento da cidade acompanhava o prenúncio da noite. Menos no fim de semana. Depois a calada denunciava os passos. E eles se dirigiam em direção da casa da reunião.


O que de grave haveria para juntar o povo do vilarejo? Outra revolta dos paulistas? Outra quebra do café? A guerra do outro lado do mundo permeava entre o real e o abstrato. Jamais a imaginaram em Palmital.


A angústia do silêncio. As notícias chegavam depois que o susto havia vingado. Sempre pela urgência do telégrafo, breve e seco. O correio trazia as palavras longas. Transformava a ansiedade em prazer, a ferida em cicatriz. A Hora do Brasil se iniciava. Ruídos de estática misturados ao Guarani. O que de grave haveria para juntar o povo?


A vila amanheceu como havia terminado a noite. Nada tinha mudado. Mesmo porque a politica do café continuava a mesma.


Voltaram para São Paulo seis meses depois. Habituadas com o tempo para pensar. Com o marasmo que enfim fazia parte da vida. Com a desconfiança. Como aquelas pessoas simples do que não era simples. E com o cuidado de uma notícia que transformasse o paraíso que traziam.


Nunca foram perguntadas se queriam ficar. Tampouco questionaram a volta.




 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Dragão de Jade

"Na terra seremos rainhas e de verídico reinar e sendo grande nossos reinos chegaremos todas ao mar" Desolación, Gabriela Mistral Avião. Parecia parado. Apenas um som de motor. Constante, monótono, longe. Ao lado uma mulher. Perfume suave, doce. Mãos delicadas, leves. Ligeiras no teclado do note. Escrevia, apagava. Repetidas vezes. Olhava de soslaio. Fone de ouvido. Nem ouvia a música. Olhos quase cerrados. Apertados, fingidos. Tinha o assunto, não a coragem. Mas precisava ser rápido. Restava menos de meia hora. A restinga da Marambaia se abria como num atlas. Logo o Santos Dumont. Ofereceu um café. Ela sorriu. Recusou sem tirar os olhos da tela. Cafeína. Estava tensa. Confessou a ele, a todos, a ninguém. Genérica, desatenciosa. Mal via a hora do desembarque. Mesmo assim ele se aproveitou. Tomaram o mesmo táxi. Sol cáustico. Caravana, o ladrar dos cães. Mercadores. O homem traindo o homem. Fila atada pelos passantes dos colares de ferro. Chagas do metal a ferir o cangote.

Uma Caixa de Botões

Mas de algum modo as pessoas  são eternas. Clarice Lispector Não havia herança. Apenas umas coisas pessoais. A sacola de costuras veio junto. Sabia o que continha. Coisas. A alquimia da perda prematura transformou-as em ícones. Devagar ia alinhando todas sobre a mesa. Cada uma mais sagrada que a anterior. Sentia a mãe por perto. A caixa de botões foi a última. Abriu o trinco com suspense. Ritual. Trouxe de criança. E a temeridade que o sagrado impõe. Ficou extasiada ante o tesouro. Como sempre ficou. Reconheceu as jóias. Uma a uma se encaixando num pedaço do passado. O indicador a revirar, o medo de ser espetado por um alfinete. Pegou alguns botões. Na palma pequena da sua mão o pensamento a carregou. Como quando criança. Um pequeno botão forrado. Tecido estampado, o primeiro ao qual se atentou. Pinçou-o entre o indicador e o polegar. Trouxe-o perto dos olhos no gestual de um ourives. Uma foto sépia. As duas à porta da loja de chapéus. A vitrine mostrando

O Portador

O cromeleque dos Almendres em Évora, umbigo da terra. Rastro do turbilhão. Comum. Não para ele. Tomava horas a olhar. Lisboa. Depois o Atlântico ao largo. Do convés mais alto viu a terra se afastar. Gávea se existisse. Topo da calota. Água, céu. Sem o desenho de uma paisagem. Apenas vento por todos os lados. Dias na imensidão. Longos. Santa Maria, Pinta e Nina. A espuma dos seus cascos ainda marcava.  Cromeleque dos Almendres. Concelho de Évora. Encosta voltada ao nascente, o oriente nos olhos. Quantos mil anos à espera do amanhecer de um solstício de verão. Talvez vã. Nada a considerar a hipótese de tudo aquilo ser descarte de uma civilização ida. Enfim, não era o dia. Não havia magia. Apenas a crença dela. O bastante para preencher. Pensativo, imaginava quem poderia ter pisado o mesmo chão que ele. Acabou por se juntar à multidão. Anônimo.  Descoberta acidental. Comentário no cromeleque. Uma tasca em Évora. Comida alentejana, bom vinho. Acepipes. A perdição nas sobremesas. Mesa do

O Inca

El joven Atahualpa, estambre azul,/ árbol insigne, escuchó al viento/ traer rumor de acero. Era un confuso/ brillo y temblor desde la costa,/ un galope increíble/ -piafar y poderío- de hierro y hierro entre la hierba./ El Inca salió de la música/ rodeado por los señores. Las Agonias-Pablo Neruda Descia. Rua fria de New York. Melhor, seguia a planura das ruas. Retas até onde os olhos podiam enxergar. O vapor do Metrô soprado das grades no chão criava a bruma. Costurava a diversidade. Babilônia. Ruelas, becos estreitos. Nódoas de umidade na cal da pintura. Verde água escorrida, reboco. Noites úmidas, pegajosas. Cômodos insanos. Mofo a arder as narinas. Janelas fechadas, tementes. Mercadores. Gente aos tropeços. Até o ocaso. Houvesse luz e Babilônia se prostituiria todo o tempo. Onde corresse a vida. Nas tabernas. Até o cerrar das portas. Corpos tomados pelas mesmas mãos da comida. Cheiro azedo da bebida entornada. Luxúria a soldo. Bacanal. Final de congestionamento.

A Pensão da Rua Jandaia

Alma escancarada. Tênis encharcado. Apenas um movimento perdido no cenário desolado. Ninguém a condescender. Sequer a compaixão. Noite. Silêncio urbano. Inverno. Mesmo às vésperas da primavera. Chuva fina roubando a proteção das marquises. Vento perdido pelos vãos dos prédios. Ar denso. Desolação. Perspectiva da Avenida Paulista nas luminárias do posteamento. Diluídas no reflexo do asfalto molhado. Esticando a distância. Iludindo. Cenário irreal. Como foram irreais aqueles momentos. Aquelas palavras. Andar por inércia. Pensamento estanque por um negrume. Uivo agourento a preencher o breu. Do nada. A bloquear. Açoite no corpo. Vulto. Então viu seu vulto a vagar. Para o inferno não basta a morte. E há um só caminho. Curto, acre, cáustico. Talvez. Pior o frio desolado da desesperança. Fosse purgatório se poderia negociar. Mas o delírio da perda impõe extremos. Inoculado o veneno, o insuportável assoma. Depois a trilha maldita. Paisagem de escombros. Trama de raízes a tranc

Uma Certa Senhora

"Bendito seja eu por tudo o que não sei, gozo tudo isso como quem sabe que há o sol" Fernando Pessoa Ava Gardner. Vestido negro. Justo. Um pouco acima dos joelhos. Decote sem alças. Jóia no colo. Designer caro. Sapatos nem altos nem baixos alongando o perfil. Cabelos presos deixando a impressão de algum desarranjo. A quebrar a figura perfeita. Pele delicada. A maturidade plena no corpo. Olhos morenos de jabuticaba. Mulher pintada por Goya. Rosto sereno. Nu. Parecia não dar conta da vida transbordando no corpo da mulher. Elegância. Ele fazia questão. Ela ia além. Sabia o que estava provocando naquela noite. E das consequências. Mas não podia deixar de sentir. O auge dos seus trinta e tantos anos carregava a juventude insolente. Ele não atinava, não entendia isso. Mesmo a mais discreta roupa trazia graça àquele corpo. Natural, inevitável. Ao entrar foi medida. Alto a baixo. Olhares traíram olhos. Sentou-se. Cruzou as pernas bem torneadas. Mas

O Olhar

                                  Chuva. Água permeando nos cabelos ralos. Incomodava. Parou à beira da pista. Caminhada longa, a parecer sem fim. Passos mecânicos. A cabeça trazia o inferno. Pensava em círculos sem espaço para concluir. Nem trégua. Um tormento não substituiu o outro. Foi somado. Clarão da vila no topo. Luzes minguadas, opacas na névoa. O negrume entre eles. Distância em olhos ansiosos a parecer maior. Medida entre a resignação, a obstinação. Não bastasse, a rodovia. Um fio de lanternas vermelhas, muralha. Parecia eterna. De súbito atravessou pelos restos barrentos do aguaceiro.  Estrada vicinal. Asfalto remendado. Traiçoeira. Então o acidente. No deserto daquelas horas restava a sorte. Iluminasse um farol, o corpo sem vida na lama. Esconso. Sangue no batom carmim. Escorriam juntos. Uma jaqueta cobria o peito desnudo.  A pensão avançava na calçada antes da rua se perder na escuridão. Formava um canto. Passou por ela ressabiado. Rente à parede, furtivo. A políc

O Caminho

Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. Cecília Meireles A tropa se deparou com a silhueta negra. À direita, o caminho por um vão da serra. Parnaíba à esquerda. As ruas do comércio, dos cabarés do meretrício. Conforto de vida mundana. De um teto. Mesmo nas camas duras da pousada. No pelego sobre as tábuas brutas do assoalho. Mas longe do chão frio da serrania. O tropeiro buscou a trilha pelo rio da Canguera. Chão de poucas manadas. Acima da várzea úmida, do atoleiro da cheia, da mata ciliar do rio encravado. Abaixo do solo seco, duro. Do topo varrido pelo vento. Lavado pela chuva. Cascos à meia encosta pelo macio da terra. Piso estreito. Por valas, barrancos, pirambeiras. Vez ou outra a clareira. A se sobressair entre alas, sombras. E sempre o aguaceiro interminável. O viço profuso da vegetação na chuva. Exuberância a oprimir. A diluir o caminho. Embrenhando o homem. Mata a tomar os sentidos. Ce