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Uma Certa Senhora




"Bendito seja eu por tudo o que não sei,
gozo tudo isso como quem sabe que há o sol"
Fernando Pessoa



Ava Gardner. Vestido negro. Justo. Um pouco acima dos joelhos. Decote sem alças. Jóia no colo. Designer caro. Sapatos nem altos nem baixos alongando o perfil. Cabelos presos deixando a impressão de algum desarranjo. A quebrar a figura perfeita.

Pele delicada. A maturidade plena no corpo. Olhos morenos de jabuticaba. Mulher pintada por Goya. Rosto sereno. Nu. Parecia não dar conta da vida transbordando no corpo da mulher.

Elegância. Ele fazia questão. Ela ia além. Sabia o que estava provocando naquela noite. E das consequências. Mas não podia deixar de sentir. O auge dos seus trinta e tantos anos carregava a juventude insolente. Ele não atinava, não entendia isso. Mesmo a mais discreta roupa trazia graça àquele corpo. Natural, inevitável.

Ao entrar foi medida. Alto a baixo. Olhares traíram olhos. Sentou-se. Cruzou as pernas bem torneadas. Mas foi discreta no gesto. Recostou-se naquela poltrona de assento curto. Postura ereta. Assumiu as atenções.

O marido acompanhava a cena atento. Sem deixar perceber. A indiferença aparente sufocava o ciúme que corroía. Era sua aquela mulher. Talvez. Corpo e alma. Cada pedaço daquela pele fresca, jovem. Conteve-se todo o tempo.

Entendeu o objetivo do marido. Montou o jantar. Cada detalhe. Precisa. Família antiga. Herdeiros de um nome. Desde os tempos em que se falava francês em São Paulo.

As visitas sequer trouxeram flores. Não estavam acostumados a receber em casa. Nem de serem recebidos. Tornaram a sala um kneipe barulhento. Já estavam altos quando o jantar foi posto. Ela serviu cada convidado.

Discreta. Retirou-se logo depois do café. Deixou o marido, os convidados à vontade para o assunto daquela noite. Ele voltava a ser a principal personagem. Deveria.

Tudo perfeito até se cruzarem no corredor. Apertou seu braço com grosseria. Mas sem alarde. Inclusive no empurrão de encontro à parede. Ela saiu do quarto dolorida. Apenas para se despedir.

A opção pelo solitário intrigava. Assim escondia as marcas. Mãos rudes de um marido ensandecido. O amor talvez sustentasse o drama. Talvez fosse usado para justificar. A inércia. O comodismo. Nada, tudo. Apenas ela sabia. Ou não. Resignada. Tinha aprendido a manejar a vida em compartimentos estanques. Num deles concentrava a dor. Ali ele foi colocado.

Convivência mórbida. Cada qual ao seu modo. Ele com a violência, ela com a submissão. Depois tantos anos cristalizou-se o comportamento. O que não resultou em reação passou a ser da relação.

Já no tempo que acercou a visita dos alemães percebeu algo diferente. Ela estava feliz. Ficou intrigado. Passou a ter ciúmes dessa felicidade. Sentia não ter origem nele.

Calado. Construiu uma barreira a reter a vida em seu interior. Quaisquer fossem os sentimentos. Até o insuportável assomar. Então explodia à pressão da angústia. Ela não reagia, natureza do caráter. A passividade irritava mais. De palavras à agressões. Jamais considerou depender do elo mais fraco.

Vida tensa pela expectativa. Da ira a qualquer momento. A qualquer atitude. A qualquer palavra. Depois a promessa de sempre. Prostrava-se aos pés dela. Como se fosse possível cauterizar as feridas. Confessava o amor. E a obsessão que esse amor trazia. Ela aceitava. Acuada. Conhecia a reação dele por não ter o perdão.

Sem pausas. Nem muito tempo entre crises. Um homem amargurado pela fragilidade do seu equilíbrio. Incontrolável. Guardava o humor insano por horas, dias até desabar qualquer mortificação sobre ela.

Soltou os cabelos em frente ao espelho da penteadeira. Tirou o vestido negro. O corpo pequeno parecia de outra mulher. Não reconheceu a imagem. Ava Gardner. Sua vida se resumia a representar. Roteiro amargo. A atriz desaparecia na roupa despida. Quem era aquela mulher de olhos perdidos? Chorou para lavar a alma.

Certo dia não quis mais que ele voltasse.

Como se estivesse diluído no cenário. Nem ela sabia bem explicar. Foi se materializando à medida em que se aproximava. Merlin. Ela se encantou.

Estava frágil. À emoção de cada artéria aflorada. No princípio aflita por não controlar o turbilhão. Mas a necessidade do prazer perdido no sonho desfeito tomou seu corpo. Criou uma janela para conciliar os dias arrastados, os que a tornavam feliz.

Sequer justificou o comportamento. Encenava a tristeza nos dias ruins. Mas vivia um filme delicado da seção da tarde. Feliz como Diane Lane. Na Toscana. Iluminada na vida singela. Desejou a trama. Descreveu para ele. Como se conta um sonho. E o convidou. Ele se deixou seduzir.

Passou a usar a palavra felicidade. Mais que as jóias. Sabia apenas o que não queria. E não o queria. Simples. Descobriu a exata sensação do repúdio ao não sentir mais ser esposa. Numa noite abriu as pernas. Deixou-se usar. Teatral. Fria. Indiferente. Única atitude ao medo de reagir. Ele continuou sem perceber. A presumir o prazer dela pelo dele.

Naquele jantar quis ser mulher do homem por quem estava apaixonada. Organizou cada detalhe. Desde as roupas a serem usadas. Num estacionamento abriu a caixa. Ele escolheu o vestido negro. A noite viveria um encanto.

Cenário montado. As luzes da sala se acenderam. Script. Mesmo sabendo o que viria, ainda assim se fez desejada para ele. Ao marido restou a vaidade. Cultivava. Investia na imagem dela. Prazer de um voyer. Outros olhares incomodavam. Mas alguém que sequer estava ali haveria de o ferir mais.

Terno risca de giz. Azul. Gravata vermelha com nó dado por ela. Estava sentado. Mão esquerda sobre o joelho. Na direita o copo filtrava a luz tênue vazada da persiana. Penumbra a diluir o ambiente. Então o telefone. A frase sussurrada. Ansiedade desfeita. Depois a imaginação a correr.

Cada um em seu vagar.

A paixão consumia. Como toda paixão. Ela não sabia que buscava outra vida. Ele quis instigar a alma opaca. Ela quis entender assim. E se propuseram num plano traçado pelos dias do acaso. Nos outros bastava sentir.

Porém as palavras passaram a ser ditas cada vez mais. A relação fugiu do envolvimento. Foi à posse. Ela precisava pertencer a quem entregara a sua alma. Ele passou a sentir ciúmes do marido.

Vida reprimida a sustentar um casamento. A justificativa magra para explicar a explosão. A paz de alguns momentos a alimentar o corpo dolorido. A fé de uma mudança esperançada depois. Mas logo tudo desmoronava. Uma roda a repetir o rangido. Estava cansada. Precisava de perspectiva.

Foi quando não quis que ele voltasse. E tentou se iludir com o que não tinha. Precisava de dias corriqueiros. Como qualquer um. Criou outro compartimento para viver a felicidade.

A ferocidade do dono. As represálias pouco importavam. A mesma paixão que exauria amortecia a razão. Não planejou a fuga. Apenas ia seguir. Mesmo estando velada a outra ponta da estrada. Também não se preocupou.

Mas faltou cumplicidade.

Se a decisão dela foi tomada na tormenta, a vida linear dele o mantinha centrado. Ele sabia das consequências. Previu a reação alucinada do marido insano. E o encargo insuportável. Pivô. Mostrou o cadafalso. E o quanto estava assustado. Para ter uma vida de volta, ela haveria de atravessar o inferno. Talvez não suportasse.

No que era a sua vida devia pertencer para ser. A paixão que libertou tornou-se prisão. Precisava de outra atitude. Não uma felicidade apensa ao inferno. Nem a emoção condicionada à limites. E por não se pertencerem, o medo do rompimento. Do vazio depois.

Tanto naquele peito pequeno. Quanta mágoa. E a crise. Mesmo assim a tormenta deixou permear alguma luz.

Na verdade as janelas eram sobra. Confinadas entre momentos diferentes de cada um. Mas eram os limites estabelecidos. E ela desconversava se questionados. Limites reais. Físicos. Não podia se prender a eles para alimentar a ilusão. A paixão sem freios liberava a endorfina.

Mas paixão é desprovida de rumo. Cada um seguia o que lhe convinha. Ela então entendeu que não podia alimentar qualquer expectativa. Além da janela apenas o rompimento. Inevitável. Teve coragem. O pranto largo anunciou o fim. Consequente. Chaga imposta.

Ainda o procurou arrependida. O encanto não tinha sido quebrado. Ele foi inflexível. Por entender. Por gostar. Estava perdido num sentimento inconfessável a constranger o coração. Preferiu aceitar o desígnio.

Vida amornada. Sequer a inércia de um passado bem resolvido. Nada. A piorar, os desatinos de uma paixão. O ceticismo à felicidade. Porém a alma inquieta jamais desistiu. Então reagiu. Mas por inércia. Porque é da vida reagir.

Estava à deriva. Como sempre. Mas a opção pela razão mostrou uma mulher madura até então omitida pelo comodismo. Cada movimento passou a ter importância. Exercício de autodefesa. Uma ventania havia assolado a sua alma. A cautela, a tocaia passaram a coexistir. Os olhos continuavam doces. Ledo engano. Vinham de outra mulher. A atriz os escondia.

Certo dia aconteceu.

Não haveria um kneipe. O parceiro havia ficado em Affalterbach. Veio com a esposa. E as lembranças daquele jantar. Inesquecível. Pelos negócios. Pela recepção. Pela diva que os recebeu. Um acontecimento. Mesmo sem saber que a paixão foi o que de mais importante houve. Sequer esqueceu a torpeza do anfitrião. A sensação do sórdido no ar. Omitiu para não constranger. Mas usou como tempero dos comentários. Ferino.

Então um detalhe quase perdido surgiu. Desprezado na ebulição dos sentimentos. Mas impresso na memória. O interesse do marido ao ouvir sobre aquela mulher. Maior que o ciúme espicaçado. Era notório. Apenas ela não quis saber. Estava sob a conspiração da paixão que a tomava. Tanto que se sobrepunha. Rebuscou os arquivos.

Uma apresentação formal. Empatia imediata. Nada mais. Foi quando aquela mulher passou a frequentar os sonhos dele. Buscou se aproximar. A artimanha ingênua de uma reunião casual não enganou quem tinha um prisma nos olhos. Pelo que havia passado. Pelo que conhecia do roteiro.

Não houve generosidade quando se vestiu discretamente para dar brilho a outra.

Ao abrir a porta, duas águas marinhas. Desconcertou-se, traído pelo comportamento incomum. Não se importou. Havia criado a situação. Relaxou apenas depois de algum vinho. Parecia um plano perfeito. Não percebeu a manipulação.

Beberam sem perceber. Ele pouco. Ela nada. Sorrateira, não impediu o marido de se soltar. Apenas dirigiu a cena para que não se perdessem. E se fez de preocupada na despedida. Pela falta de sobriedade.

Pediu que os levasse para casa. Mas não quis acompanhar. Sequer precisou de desculpas. O argumento estava implícito. O alemão desabou no banco de trás. Adrenalina. Mãos suadas contra o volante. A se conterem. Rodovia vazia. Seguiam em silêncio. Vez ou outra algumas palavras formais. Soltas. Sem encaixar um assunto. Um adolescente, não um homem experiente. Então sentiu a mão dela nas suas coxas. Foi o bastante.

Mudou. Arrefeceu a severidade excessiva. As agressões. A palavra separação que jamais foi do seu vocabulário passou a ser constante em seu pensamento. Tentava contar nas entrelinhas. Esticava a conversa. Como nunca tinha feito. A procurar um jeito de tocar no assunto. Quando conseguia faltava coragem.

Ela podia induzir. Tinha o controle. Mas nunca estiveram tão próximos. A vida passada à limpo era acidental. Acontecia num jogo. Mas acontecia. Mesmo que apenas fosse para manipular uma situação. Conversas que deveriam ter acontecido. Às vezes duras. Não como agressões, acusações. Quais leniências a comentar se um passado rude era o que tinham?

Foi levando. Um incômodo persistia. Algum resíduo num fundo qualquer. E uma sensação de traição. Imprevista, porém reveladora. O marido prensado contra a parede. Num dilema ético. A ela bastava eclodir a crise final. Então recuou. Refém de um sentimento inesperado.

Estava desarmada. Um pêndulo tendendo ao repouso. Ele resolveu se aquietar. Era comum demais pra se perder em aventuras. Acomodaram-se.

Certo dia a memória trouxe o número de um telefone.

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