O cromeleque dos Almendres em Évora, umbigo da terra.
Topo da calota. Água, céu. Sem o desenho de uma paisagem. Apenas vento por todos os lados. Dias na imensidão. Longos. Santa Maria, Pinta e Nina. A espuma dos seus cascos ainda marcava.
Cromeleque dos Almendres. Concelho de Évora. Encosta voltada ao nascente, o oriente nos olhos. Quantos mil anos à espera do amanhecer de um solstício de verão. Talvez vã. Nada a considerar a hipótese de tudo aquilo ser descarte de uma civilização ida. Enfim, não era o dia. Não havia magia. Apenas a crença dela. O bastante para preencher. Pensativo, imaginava quem poderia ter pisado o mesmo chão que ele. Acabou por se juntar à multidão. Anônimo.
Descoberta acidental. Comentário no cromeleque. Uma tasca em Évora. Comida alentejana, bom vinho. Acepipes. A perdição nas sobremesas. Mesa dos dias nativos, típicos. Longe do turista, do tempero insosso ao atacado. Viela clara, casas caiadas debruçadas nas sacadas. Placa ilegível, desbotada. Uma buganvília lilás escondendo a vidraça. A porta descascada, encostada.
Abriu, esticou os olhos. Penumbra da trepadeira sem poda. A luz restante a desenhar sombras. Na mesa dos fundos um homem estranho se aproveitava disso. Mesmo sentado, parecia alto. Forte mesmo sob a túnica branca. Cabelos escorridos, rosto miúdo, longo. Nariz aquilino nascido nas cavas escuras dos olhos. Pele solta nas mãos sobre as tábuas carcomidas da mesa. Nós salientes, nervos. Asas de morcegos. Parecia que já o tinha visto,
O vulto gesticulou para que aproximasse, como o conhecesse. Havia descoberto terra fértil. Criou um silêncio constrangedor para dar gravidade à expectativa. Escolheu poucas palavras. Precisas, bisturi. Com a voz rouca, presa na boca, pediu que fosse o portador. Apontou para um envelope. Deveria ser entregue um dia depois da sua chegada.
Estava com os olhos na carta a compor a frase de recusa diante de um pedido perfeito. O envelope queimava as mãos. Temeu ser o portador da sua própria desgraça. Havia os correios. Quando levantou a cabeça não viu ninguém além do empregado de mesa. Tudo numa fração.
Imaginou ser notório na multidão do cromeleque. Qual turista se afastaria de Évora a lhes sustentar a gula, a lhes oferecer ruínas romanas? Então entendeu o propósito do comentário próximo. Havia sido induzido, seduzido pelo estômago. O que poderia ser mais além de uma armadilha sutil?
Apenas papel. Os detectores do acesso ao navio também nada acusaram. Podia ter jogado numa lixeira. Algo impediu o gesto. Talvez a curiosidade primordial. Deixou no cofre da sua cabine.
Gostava da manhã. Não do nascimento do dia. O cruzeiro, luxúria confinada nas amuradas. Prisão ainda assim. Quando saiu do salão viu a ponta do dia rasgando o escuro. Sufoco, sentimento de perda. Melancolia. Era o que o instante da troca trazia. Fechou os olhos sob os óculos escuros. Dormiu numa chaise do convés à sombra do radar. O vento ainda a trazia o frescor da noite.
Sono profundo. Acordou na tormenta criada pelo velho. O envelope incomodava. Foi ao cofre. Fazia isso todos os dias. Tensão da incumbência. E intrigava o fato de ser o portador. Decidiu atirar o envelope ao mar. No dilema não havia percebido a aba solta. Presa apenas nos recortes. Abriu com ar de preocupação. Sentiu estar violando a intimidade de um segredo. E estava. Uma folha em branco foi a surpresa.
Parecia a noite se aproximando. Via-se o negrume à quilômetros. Mas não era noite. Vagalhões passaram a açoitar o casco do barco. Assobio de vento entre os vãos das ferragens. Céu a explodir. O balanço sonolento pelo descompasso. O que parecia um vão depois do vagalhão incomodava com um frio no estômago. "Titanic", "O Destino do Poseidon". Tanto a assustar. Não assustou.
Cabine. Fora, a fúria. A sensação de perda incomodava mais. Rompimento inesperado. Como a morte. Mas sem o conformismo do inevitável. O que restou estava naquela viagem. Lambia feridas.
A ausência pouco adiantou. Trazia restos na bagagem. Optou pela introspeção. Detestaria outra coisa. Bastavam sensações. Sol. Vento. O álcool embriagante à noite. O vigor frenético do som.
Estava na mira dela fazia tempo. Deque superior. Sempre vazio. Sentou-se ao lado. Com algum talento encontrou a brecha. Criou uma pequena intimidade, cumplicidade. Falando de amores mal resolvidos, dos pequenos golpes da vida, de dores. Cigana, foi transformando as confissões dele no seu script. Então o encurralou quando perguntou se acreditava em mistérios.
Ele precisava desabafar o absurdo do envelope. Sentia ter se comprometido com um segredo. Mas não houve qualquer promessa. Acabou contando. Depois caiu ensimesmado. Pareceu cansado. Isso a incomodou. Foi o que bastou para que ela se despedisse alegando qualquer coisa. Ele aparentou não se perturbar. Pareceu uma conversa à toa. Ela sabia ser uma bela mulher. Detestou não ter despertado o desejo.
O Atlântico aborrecia. Paisagem invariável. Remetia à monotonia. O dia final de um longo outubro o despejou no porto. Subiu a serra. Parecia a primeira vez numa cidade tão sua. No outro dia entregou a carta. Pensou num mensageiro, mas a curiosidade o venceu. Um prédio antigo no centro, corredores escuros, portas sujas. Mofo. Anunciou-se num dispositivo próximo à campainha. Entrou entre restos de vasos e caixotes. Pareciam antropólogos. Ar confuso, filme de suspense.
O destinatário podia ter qualquer idade entre quarenta e sessenta anos. Roupas rotas, antigas. Linho branco. Rabo de cavalo a prender os longos cabelos. Lembrava o velho. Recebeu, abriu o envelope com cuidado. Desdobrou a folha, apertou-a entre as mãos abertas. Unhas longas, manchadas. Parecia orar. Olhar perdido, transe. No silêncio urbano ouvia-se o próprio respirar. Depois ele se sentou, cansado. Então agradeceu o portador e lhe mostrou a porta.
O Sid, o desconhecido extremo ocidente tão oposto. Então a Europa atravessou o Atlântico e desvelou o mistério. O infinito do oceano foi trocado pela vastidão. No extremo sul do ocidente estava a América do Sul. A polaridade que constante nem sempre é matemática. No universo ou na vida. A simetria ao sul, mas os solstícios a se contraporem. Previsíveis no calendário do observatório rudimentar. Megalítico. Santuário a dar alma ao tempo.
Primeiro de novembro, início do ano. O correio podia não ser preciso.
Estava indiferente. Como tinha ficado desde o rompimento. Nem inferno, nem purgatório. Apenas queria uma vida feliz. Desceu pelo velho elevador com portas sanfonadas. Então, a surpresa. Encontrou-a logo que saiu daquele predio acre.
Acabaram num café. A singularidade de uma folha de papel a causar alvoroço. Era tudo o que não queria. Bastava o inferno passado. E uma mulher que não estava ali por acaso.
Pele morena, cabelos negros e lisos. Elegante em sapatos altos. Olhos amendoados. Iris dourada. Havia mistério. Ficou a olhar aquele rosto como se pudesse ter respostas. Ela questionou o silêncio. Ele foi objetivo. Quis saber da história. Ela não entendeu. Ou fez. Ele não conseguiu atinar. Deixou-se a uma sensação de felicidade vinda de não sei onde.
O velho procurava alguém na visita ao cromeleque. Não quem tivesse companhia pronta a questionar uma atitude. Uma pessoa solitária. Descobriu-a sentado numa das pedras do círculo externo. Por intuição, por experiência. Ele percebeu o velho. Não se interessou. Introspectivo, corria os acontecimentos da sua vida. Foi o suficiente para ser eleito. Não era especial, nem diferente. Acabou por juntar-se à multidão. O velho pode se aproximar. Falou do restaurante perto dele como se o estivesse indicando à alguém.
O sol era protagonista. Um desses momentos de acontecimentos solares, planetários. Nem sabia. As palavras do guia induziam à magia. Não se iludiu. Apenas gostaria fossem verdadeiras.
Sentiu a energia daquele estranho homem naquela sala. Saiu sem perceber o presente recebido. O despejo da infelicidade. Depois sentiu que não mais reprimia o desejo de ter aqueles olhos amendoados. Havia sido premiado com a felicidade do outro lado.
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