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Uma Caixa de Botões

Mas de algum modo as pessoas são eternas.
Clarice Lispector




Não havia herança. Apenas umas coisas pessoais. A sacola de costuras veio junto. Sabia o que continha. Coisas. A alquimia da perda prematura transformou-as em ícones.

Devagar ia alinhando todas sobre a mesa. Cada uma mais sagrada que a anterior. Sentia a mãe por perto. A caixa de botões foi a última. Abriu o trinco com suspense. Ritual. Trouxe de criança. E a temeridade que o sagrado impõe.

Ficou extasiada ante o tesouro. Como sempre ficou. Reconheceu as jóias. Uma a uma se encaixando num pedaço do passado. O indicador a revirar, o medo de ser espetado por um alfinete. Pegou alguns botões. Na palma pequena da sua mão o pensamento a carregou. Como quando criança.

Um pequeno botão forrado. Tecido estampado, o primeiro ao qual se atentou. Pinçou-o entre o indicador e o polegar. Trouxe-o perto dos olhos no gestual de um ourives.

Uma foto sépia. As duas à porta da loja de chapéus. A vitrine mostrando. Na soleira a avó, a tia na calçada a compensar sua altura. Hannover, alguma data antes da segunda guerra. Os olhos contavam da alma. Tranquilos. Imagem de um dia qualquer.

Wilhelm Schulz, o marido de Emma Bartels. A menor. Militar alemão, morte prematura. Uma estilha na primeira guerra. Filho de um prussiano da guarda de honra de Wilhelm I. Do rigor de Bismarck. Da soberba da Prússia.

Periferia de São Paulo. Contraste a fascinar. Vida de aventuras no mar. Depois os braços de um amor brasileiro. Findas as andanças ficou por aqui. As cartas para a Alemanha não eram suficientes. Ela se sentia só. Não bastava a irmã. Eram apenas elas, mais ninguém. Vieram atrás do Wilhelm que restou.

Mãe, tia. A devassidão da guerra a destruir a serenidade da foto. A ausência. E o Atlântico imenso. Do outro lado o filho. Único.

Duas crianças esperavam no portão de um bairro na Penha. Outra na  barriga da Cida. Devia ser quase a metade de cinquenta e cinco. A menina nasceu  naquela casa simples. Tão clara, cabelos quase brancos. Meine kleine puppe.

Um dia a avó olhou para uma Cida de olhos azuis caipiras. Um olhar demorado. A Cida que o tirou dela. Do mar. Das ruas civilizadas de Hannover. De uma vida sem as aflições  da periferia. Talvez bastasse o mar daqueles olhos azuis. Talvez a cidade não fosse periferia no peito amante.

Um dia se foi. Não havia encontrado o filho.

O botão preto ordinário do cós de uma calça masculina. Segurou-o entre os dedos e ficou a olhar a luz que passava entre os quatro furos.

Quem visse aquele alemão pequeno, gorducho, calvo não imaginaria uma vida de poucos. Olhos azuis de cristal, o ar de eterna felicidade no rosto redondo. Nada a avalizar a aventura, a saga.

Hamburgo. Embarcou no Windhuk da Deutsche DST África Linie numa tarde quente de vinte e um de julho de trinta e nove sem dar adeus. Os anos na escola de confeitaria não trouxeram serenidade. A aflição dos jovens se impunha. Foi aceito na cozinha do transatlântico que fazia a rota africana.

A guerra incontida. Naves inglesas no Atlântico de todos. O Windhuk deixou a África do Sul. Escondeu-se em Angola até o banzo. Uma noite partiu na calada. Baía Blanca, Argentina. Mas havia as ondas gigantescas na Antártida e pouco combustível para enfrenta-las. Restou Santos. E o engôdo. Bandeira japonesa içada e o nome Santos Maru. Começava mil novecentos e trinta e nove.

Penha. Periferia. Ruas de terra. Um homem tomou o ônibus. Alheio. Entre a indiferença das pessoas comuns. Como sempre fazia.

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