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A Pensão da Rua Jandaia





Alma escancarada. Tênis encharcado. Apenas um movimento perdido no cenário desolado. Ninguém a condescender. Sequer a compaixão.

Noite. Silêncio urbano. Inverno. Mesmo às vésperas da primavera. Chuva fina roubando a proteção das marquises. Vento perdido pelos vãos dos prédios.

Ar denso. Desolação. Perspectiva da Avenida Paulista nas luminárias do posteamento. Diluídas no reflexo do asfalto molhado. Esticando a distância. Iludindo. Cenário irreal. Como foram irreais aqueles momentos. Aquelas palavras.

Andar por inércia. Pensamento estanque por um negrume. Uivo agourento a preencher o breu. Do nada. A bloquear. Açoite no corpo. Vulto. Então viu seu vulto a vagar.

Para o inferno não basta a morte. E há um só caminho. Curto, acre, cáustico. Talvez. Pior o frio desolado da desesperança. Fosse purgatório se poderia negociar. Mas o delírio da perda impõe extremos.

Inoculado o veneno, o insuportável assoma. Depois a trilha maldita. Paisagem de escombros. Trama de raízes a trancar os passos. Lodo fedorento. Metano. Chão a falsear.

O ar não se respira. O corpo se arrasta. Jibóia. Sanguessugas a avivar cada pedaço de pele. A alma duvida. Transforma-se em carne. A carne na dor. Tesa no esqueleto. Asa de morcego. Fuga impossível. Depositário da vida, o corpo é prisão.

Era uma noite de um setembro. A tormenta irrompeu naquele apartamento perdido de um bairro burguês. Quarto. Confinamento da desesperança. Palavras. Nada a ferir mais. Eterna se proferida. Fugiu como se pudesse. Talvez aliviasse a dor.

Manhã de domingo. Duas orquídeas sobre uma pequena mesa de cana-da-índia azulada. A luz tênue da persiana. Calor. Café fresco. Quietude. Quantas manhãs como aquela, tantas as vezes em que o coração duvidou. Medo da felicidade. Como se fosse o prenúncio de maus tempos. Memória guardiã. Num lampejo se armava. Sobressalto incômodo.

A cidade. Lençol estendido na ondulação da topografia. Feixe de torres tomado num punho. Cravado no reticulado de um só golpe. Arranha-céus debruçados na rua. Avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Descia ao centro. Confusa na teia da fiação. Paliçada de postes.

Um rato pelos rodapés das ruas. Misturando-se à sombra. Fugindo da Avenida. Nem tão iluminada. Sentiu-se exposto. Não resistiu. Maquinal, dobrou à direita. Travessa escondida. Rua Jandaia. Não podia ser outra.

Desamparo. Derrota. Seguiu até se exaurir. Demorou a perceber o corpo moído. Animal assustado, buscou abrigo. As duas portas de enrolar sempre estiveram lá. Na outra ponta da rua. Entrou furtivo. Desapercebido. Sequer se importaram. Parecia parte do antro. Resto. Aninhou-se num vão da caixaria. Longe da sinuca. Vencido pelo cansaço afinal.

Fim de noite. Cabeça entre os joelhos. Sentiu um toque, cabo do rodo. Quando olhou havia dor. Parecia eterna em seu rosto. O caixeiro tirou o avental. Apontou o banco sob a marquise. Estavam cansados. Um por não mais se surpreender. Outro pela desdita. A cidade continuava lá.

Ana, Madalena. Moravam juntas. Profundamente.

Um par. Casal. Amantes. Enquanto a cidade da noite acobertava. Planeta da Augusta. Piolim dos artistas. Eduardo's da Nestor. Aquela pensão da Jandaia era cúmplice. O dia as separava por preconceito.

Os anos não curam. Não preservam. Virtudes. Mágoas. Estigmas. Nem as dores. Ele trazia apenas cicatrizes. Mesmo porque nada teve a preservar. Não o reconheceram. Nem poderiam. Eram as mesmas. Como se a vida fosse feita de repetições. Ele não. Mas a casualidade conspirou numa calçada de uma rua ao lado da Praça Roosevelt. Abraçaram-se com o mesmo afeto.

Desataram a conversa. Assuntando, cautela. Foram levando, cuidado. Falaram dos dias. Por falar. Há anos carregavam a madrugada do encontro. Nunca entenderam. Depois ele sumiu. Ouviu. Não que quisesse. Ou devesse. Enfim descobriram. Depois de tanto tempo juntaram aquela tarde à madrugada. Pareceu uma mesma história. Mesmo assim ele continuou indiferente. Não era mais protagonista.

Confiava. Gente limpa. Quase todos daqueles lados eram. Usaram a palavra desajuste. Conheciam muito bem o significado. Quiseram ser suaves. Não houve como. Fingiu não perceber o embaraço. Deixaram um chope a marcar.

A cidade tinha se esticado para os lados da Avenida Paulista. Deixou arcos nas fachadas. Molduras ruídas. Casas geminadas. Desenhos rebatidos. Pareciam casarões. Estreita, escura. Rua a endossar a imagem. O declive depois da curva abria o cenário. Contraste. Outra cidade sobre os telhados das casas no baixio. Desperdício de paisagem. As calçadas mostravam mais.

Ficaram as pensões. Cabiam nos bolsos rasos. Gente de todas as bandas. Mais nordestinos. E como se não fosse respirado, o ar discriminado da diversidade sexual. Justo onde superar era o que sobrava. Mesmo assim o preconceito vazava pela esquina. Pouco que fosse. A cidade havia abandonado a todos. Com igualdade. Era o que devia preocupar.

Casa fracionada. Tanto quanto pudessem. A tomar cada espaço. Desenho casual a acomodar. A envolver. Sem escolher as caras. Corredor escuro. Prensado entre paredes cegas. Mofo. Duas grades nos fundos protegiam cada porta. Sala, penumbra. Vitro para a parede suja. Lâmpada amarela de filamento. Pareciam iguais.

Madalena apareceu com o endereço. Acharam decadente. Nunca contaram o que as convenceu. Passaram ser parte. Como se nunca tivessem deixado aquele lugar. Todos sabiam. Nada que a rua não soubesse.

A solidão da liberdade incomodava.A distância infinita do caminho desconhecido trazia o fascínio, não a coragem. Encerrou-se no dilema do único vínculo do qual não abriu mão. Até a noite de um setembro. A tormenta irrompeu no apartamento perdido em um bairro burguês. Porque na sua ilusão criou a de quem a amava. No arrebatamento não se voltou. Golpe único e certeiro.

Indolência. Presumia a vida submetida aos seus sonhos. Sem conquista. Arrogância a impedir a construção da verdade. Sucumbiu às emoções imediatas. Ao desprezo à trama inevitável. A mentira furta. Droga. Endorfina, nada mais.

Perdeu-se. Angústia por abater. Buscou o claustro dos fundos daquela pensão. Esperou por elas. Na tarde vazia choraram abraçadas. Um choro de fim. Dolorido como deveriam ser. Juntaram os desencantos das confidências de insônia. Depois tentaram aparar. Apenas por tentar.

Palavras. As que convieram. Não que paixões fossem justas. Haviam vivido o bastante para saber disso. Também que a paixão não tinha escrúpulos. Entenderam a manipulação.

O caixeiro o carregou para a pensão. Outra porta. Nada que pudesse perder além da mala de papelão. Do rádio relógio comprado na Praça da República. Usado. Dormiu como sempre. O outro esperou o corpo ceder.

Roda da viva a surpreender. Acordou no fim da noite. Nem sabia onde. Boca seca. Encontrou ambas no corredor. Olharam-se cúmplices. A pensão construía o olhar. Depois a sede. Trocou de porta sem querer entender. Ainda havia um resto daquela noite. Embebedaram-se. Pelas ruínas. Não por hábito. Para
justificar a fragilidade das regras. De cada um. Para justificar qualquer coisa. Até os desatinos daquela tarde insensata.



Jandaia, vinte e um arcos. Encerrados em porões úmidos. Fundos, vista morta. A pedir outra para aquietar os olhos da avenida. Ligeiros. Tudo ruiu indiferente. De resto as histórias. A arquitetura dos calabreses. Que não era para os olhos. Era arrimo. Cidade a insistir na paisagem descosturada dos seus viventes.

Fazia tempo. Manhã de um domingo qualquer. Ele se espreguiçava num sofá sem culpas. Aquela noite na Paulista insistia. Não se importava mais.

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