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O Olhar


                            Chuva. Água permeando nos cabelos ralos. Incomodava. Parou à beira da pista. Caminhada longa, a parecer sem fim. Passos mecânicos. A cabeça trazia o inferno. Pensava em círculos sem espaço para concluir. Nem trégua. Um tormento não substituiu o outro. Foi somado.

Clarão da vila no topo. Luzes minguadas, opacas na névoa. O negrume entre eles. Distância em olhos ansiosos a parecer maior. Medida entre a resignação, a obstinação. Não bastasse, a rodovia. Um fio de lanternas vermelhas, muralha. Parecia eterna. De súbito atravessou pelos restos barrentos do aguaceiro.

 Estrada vicinal. Asfalto remendado. Traiçoeira. Então o acidente. No deserto daquelas horas restava a sorte. Iluminasse um farol, o corpo sem vida na lama. Esconso. Sangue no batom carmim. Escorriam juntos. Uma jaqueta cobria o peito desnudo.

 A pensão avançava na calçada antes da rua se perder na escuridão. Formava um canto. Passou por ela ressabiado. Rente à parede, furtivo. A polícia ficava por aqueles lados. Conseguiu não ser visto. Explicar um enredo assim num momento difícil seria complicado. Ainda teria que preservar o segredo confiado. Da verdade, a manhã traria apenas o que os olhos teriam.

 Comum. Sobra pobre da arquitetura colonial urbana. Duas janelas na fachada simétrica. Entrada no meio, corredor curto. Talvez um vestíbulo. Sala desbotada, pé direito alto. Portas de sair, uma de entrar. Atravessam toda a casa para os quartos de aluguel. Ele pisava macio, malandro. Deixava resmungos por cumprimentos, palavras a mais se embriagado. Cachaça sórdida dos sábados à noite. Jeito aprumado para convencer. Discreto. Fosse uma sombra não seria diferente.

Solidão. Maior num jovem. Ela entendia. Trazia outra na bagagem. Claustro imposto ao corpo como virtude. Da casa para a igreja. Desde sempre. Talvez pelo pai. Talvez a si mesma. Fraqueza atravessada na garganta. Imagem falsa a corroer. Invadissem, a intimidade revelaria a mulher.

Cobiçava o macho. Parecia seu. Evitou como pode. Anos à fio. Um dia o corpo implorou. A fresta da porta traiu. Jazia impudico na cama. Peito descoberto a instigar. Suor a rescender masculinidade. Ela não resistiu ao apelo. Impulso, arrebatamento. Ele reagiu. Lascivo. Corpo rendido ao prazer. Sem noção. Entorpecido pelo álcool.

 Fugiu depois do gozo. Pensou usar do insano para justificar. Como se um zelo moral obrigasse. Descartou. Não era a palmatória do mundo. Estava leve como nunca. Mais que por orações.

Acordou sem entender. Ressaca. Bafo de bêbado. Lençol molhado a enojar. O acre de cada poro. Creditou o melado ao sonho. Banho frio. Saiu cismado. Como se tivesse perdido uma cena. Na sala dois olhos quase cerrados fingiam cochilar.

Sítio na lonjura do planalto. Foi se esconder lá. Domínio passado de um grande clã. Reduzida a ela, sobrevivente do nome. Meeira quando já haviam sido patrões. Somava receita ao negócio da pensão barata. Nunca se soube além. Se mais, houve segredo. A vila garimpava novidades. Vivia delas. Mesmo assim não perceberam a volta. Quase um ano desta vez. Tempo suspeito, maior que as poucas semanas de hábito. Chegou quando estava para ser esquecida. Ficou aliviada. Indiferentes à vida sem graça. Sem sal, açúcar. Supunham.

 Mais que vila, não uma cidade. Igreja na praça escura. Postes da Light. Os braços da iluminação acomodavam a penumbra. Que outra coisa além do casario decadente? Apareceu numa noite sem festa. Veio de um lado qualquer. O sotaque não denunciava. Ombros largos, porte elegante. Barba por fazer. Sempre. A roupa simples não escondia o homem. Suspiravam sem se atrever. Mesmo depois de tanto tempo parecia proibido. Passados vinte anos. Nem aparentou. Ainda aguçava o desejo.

A periferia distante não era mais. Gente vinda de não-sei-onde nas ruas. Aos montes. Comércio agitado. Moda, vício. Cinema na praça a desvelar o imaginário. Vida a se soltar. Sem falsos pudores. Escancarada. Ao prostíbulo da Eva restou pouco.

 Sábado. Esperou-se muito aquela noite. "The man of the golden arms". A orquestra de Billy May abriu o baile. Fizeram de conta que era sem saber quem. Papel crepom retorcido no teto. Meia luz, cuba libre. A fumaça parada no ar viciado do salão, cigarro. Cenário de fundo.
Curto de alças, tafetá amassado. Coxas redondas marcadas no vestido. Sentiu olhos. Calafrio. O rapaz a tomou nos braços sem pedir. Ela se deixou ao encanto daquele momento. Rostos colados. Cantarolava desafinada em "bocca chiusa". Ele não se importou. Mesmo com os passos sem ritmo. O desejo roçava as coxas.

 Ele nem era tão rapaz assim. Ela sequer percebeu o terno puído. Atraíram-se. Talvez pela solidão a que foram condenados. Talvez. Pelas tantas saíram. Estacionaram num canto escuro. Kombi velha da padaria, beijo longo. Envolveram-se. Lambuzaram os corpos na sacaria vazia.

 Tomou a noite. Porque essa noite jamais o deixaria. Paixão escancarada. Tanta que não se saciou. O dia entremeado existiu apenas para anteceder. Nada mais. Mal pode esperar. Quis a mulher. Ela percebeu. Uma mulher perceberia. Por isso ele era a presa.

Motel barato. Tanto quanto o dinheiro podia. Cama de alvenaria, colchão de espuma fino, ralo. Chuveiro elétrico de supermercado, mangueira de plástico branco. Nó na ponta. Areia no lençol. Haviam se amado. Ela banhava o corpo ainda excitado. Ele seguia um anel de fumaça. Relaxado. Propôs cumplicidade. Ouviu dos amores. Dos que quis. Dos que não quis. Não se importou.

Numa manhã atendeu a porta. Rosto sisudo, barba de sempre. Equilibrava uma xícara de café na mão. Da cozinha a velha gritou que abrissem a porta. A moça procurava a mãe. Ligeira, a velha a recolheu. Não entendeu, nem se esforçou. Saiu como todos os dias.

Mesa oval arrumada pela metade a esperar. A lâmpada de filamento na ponta do fio sujo nem iluminava. Coco de mosquito. A velha de olho na porta da rua. Chegou tarde. Sóbrio, dia de semana. Fez companhia enquanto ele comia. Pisava em ovos. Escolhia qualquer assunto que não a levasse ao confessionário, embora estivesse ali para isso. Mas não saiu dos monossílabos.

Precisou de água para empurrar a comida requentada. Café. Depois o cigarro. Ela esperou. Então deixou a sonsice para abrir o coração. Contou da filha bastarda. Do coito roubado. Segredo de todos os dias. A ele restou ouvir, pasmo, atônito. Acreditou. Não teria porque não acreditar. Sem se atrever à perguntas, saiu calado como entrou. Ficou no primeiro boteco. Negou-se a estar lúcido.

Conhecia aquelas paredes. Nunca soube de um homem. Sequer uma insinuação, distração da língua. Nada. Com algum incômodo, punha a mão no fogo pelas temporadas no sítio. Há vinte anos o viço do corpo de uma balzaquiana atraía. Quadril largo, seios rijos. Desejável mesmo sob as roupas severas. As vezes mais justas. Parecia adivinhar a presença dele na cozinha nas folgas. Há vinte anos ele também a desejava.

 Demorou a assimilar. Uma noite eterna.

 Estava diante do portão há algum tempo. Ofegante, temeroso. Ela atendeu com um sorriso. Ele não viu assim, mas ela trazia um sorriso. Não esperou entrar, nem lembrou das palavras decoradas. Impossível num turbilhão. Emoção incontida. A surpresa dela tinha sido desfeita pela mãe na véspera. Livre, ela trazia a razão. Ele desabou. Depois abraçou como um pai abraça uma filha.

Saíram para comemorar.

Ruído da chuva na lataria. Escuridão. Um estampido depois do baque. Não percebeu. Desvencilhava-se do que o prendia. Porta aberta. Rastejou pela nesga de luz do farol quebrado à procura dela. Achou o corpo derramado no acostamento. Riso nervoso, espasmódico. Expressão contrariando a boca. Demorou a entender, parvo. Acariciou a mão gelada, fez uma mortalha da jaqueta. Depois saiu em busca de socorro. Corpo ferido, não sentia. Tomou o desnível do asfalto, rumo. Breu. O breu do inferno.

 Sítio. Imenso naquela região do planalto de Ibiúna. Casarão, tantas gerações. Paredes de taipa de pilão. Alguns cômodos sombrios. Janelas pequenas nas paredes grossas. No alpendre, a porta da capela. Pátio imenso. Longe dos casebres. Pobres. Tão insalubres como a casa grande. Não havia escola. O chicote do feitor educava os caipiras.

Ela nunca foi além do pátio até a morte do pai. Desavença pela mulher de um roceiro. Ficaram ao mundo. Mãe e filha. Sem entender do negócio. Alheias. Confinadas pela severidade. Perderam-se nas contas. Parte das terras pagou o agiota. Mearam a outra. A mãe não suportou. Angústia de perder os dias de soberba. Morreu numa tarde de infelicidade.

 Passaram-se vinte anos da noite do cio. Do alpendre via o mato se aproximar. Terras cansadas, inférteis. Não bastavam à renda, nem despertavam interesse. Sequer ia conferir a roça. Um cansaço na alma, solidão. Toda vez parecia a última. Talvez aquela fosse. Arrumou as malas de volta. Então ouviu o nó de um dedo na porta.

Ar viciado. Pó. Decadência. Mais pela derrota. Sentia-se no abrir das folhas. A ferrugem nos engonços a se desfazer num ranger. Assustava. A moça nunca se atreveu além da soleira. Roupa usada. Grande para um corpo frágil, escondendo contornos de mulher. Apareceu de malas prontas. O passado estava ali, entregue ao olhar da mãe. A velha acolheu.

 Não foi comovente, nunca se importou. Desde quando havia deixado a criança agregada aos meeiros. À benção de tetas caipiras. Não puderam negar o pedido. Parte da renda ficou à pensão. Somou-se à miséria da produção. A criança pouco custava. Apenas o que comia da roça. Um bom negócio. Depois de um tempo nem ela sabia qual era a filha.

 Mulher bonita. Preocupava. Podia engravidar num descuido. O rancor da velha decretava o medo. A moça sabia. Até das terras suas. Isso a apartava dos irmãos de leite. Precisava de mãos fortes. Soberba herdada, tentações do corpo.

 Periferia imensa. Tijolos nus, terracota empilhada em degraus. Geometria incrustada na encosta. Nem telhados carijós da paisagem colonial, nem foto de calendário. Ruas cruas. Sem encantos de novela. Lote encravado numa viela. Portão do corredor, casa dos fundos. Foi deixada só. Não estranhou. Hábito de uma vida. Melhor que a tapera. Nada impediria trazer a filha para a pensão. Algum resto da vila, poucos a cobrar. Nem fediam, nem cheiravam. Não trouxe.

Conhecia o motivo do pai ter assassinado o patrão. A mãe contara no desespero do acontecimento. Depois o roceiro desapareceu. Pelo crime, pela vergonha. Não culpou a mãe. Assediada. Violentada. Com medo de privar a família. O irmão nasceu logo depois. Não vingou. Não havia coração para conter aquela alma. Manteve o segredo da sua origem. Nada mudaria se soubessem.

Foram para longe. Não havia porquê ficar. Criou-se ao deus-dará assim que a mãe arrumou outro. Burro de carga, acertou a vida no cotonifício da vila. Um amigo o levou à pensão. Vida a unir as pontas. Sempre. 

Emprestou o vestido de tafetá da vizinha Seguiu, decidida. Scarlett O'Hara na escadaria de Tara. O baile mal havia começado. Cruzou as pernas como mulher, sorriu ao atacado. Ardilosa, fez-se notar por quem havia escolhido.

 História sem interesse. Família importante de um tempo encerrado. Pensou que nada acabaria. Foi indolente por conta disso. Bêbado por falta de destino. Desistiram dele. Não valia o sanatório. Deram-lhe os restos para se distanciar. Tipo comum, qualquer. Sem crédito. Encantava, os canalhas encantam. Nem teve trabalho. Regateira, entregou-se na saída do baile. Amaram-se numa kombi. Ele se envolveu. Ela queria apenas viver.

 Porta do boteco. Pendia, cachaça. Falou de amor a quem ouvisse. Foram cruéis. Insinuaram traição, vil ironia de gente caída. Maldisse as mulheres ferido pela injúria. A jura, resgate da dignidade mentida no balcão. Saiu atormentado na kombi velha. Dor incontida. Olhos molhados a velar, faróis abatidos pela garoa intensa. O outro carro foi pego de frente. Mais por dor do que por imperícia.

Luz do celular. Alguém no asfalto molhado. Demorou a entender. Então reconheceu. Apoiou a cabeça ferida em seus braços. Arma entre corpos. Atirou enquanto se olhavam. Abraçados. Depois sumiu.

Notícia, rastilho aceso. Pensão muda, aparência. Entrou sem bater. Sentiu o perfume da filha. Ele estava sentado na cama, rosto entre as mãos. Abriu os olhos doloridos. A velha os leu. Não precisou contar.

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