Pular para o conteúdo principal

O Caminho



Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta,
que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.
Cecília Meireles


A tropa se deparou com a silhueta negra. À direita, o caminho por um vão da serra. Parnaíba à esquerda. As ruas do comércio, dos cabarés do meretrício. Conforto de vida mundana. De um teto. Mesmo nas camas duras da pousada. No pelego sobre as tábuas brutas do assoalho. Mas longe do chão frio da serrania.

O tropeiro buscou a trilha pelo rio da Canguera. Chão de poucas manadas. Acima da várzea úmida, do atoleiro da cheia, da mata ciliar do rio encravado. Abaixo do solo seco, duro. Do topo varrido pelo vento. Lavado pela chuva. Cascos à meia encosta pelo macio da terra. Piso estreito. Por valas, barrancos, pirambeiras.

Vez ou outra a clareira. A se sobressair entre alas, sombras. E sempre o aguaceiro interminável. O viço profuso da vegetação na chuva. Exuberância a oprimir. A diluir o caminho. Embrenhando o homem.

Mata a tomar os sentidos. Cenário adestrando os olhos. Posse lenta. Sutil. Indolência pela cadência dos cascos. O ruído das ferragens sumindo no lerdear. Então a martelada, bigorna. Araponga a ressuscitar o instinto. O ponteiro despertou a alma enredada na trama.

Espora de roseta. A mula avançou rompante certificando a picada. Facão a limpar a rama, o cipoal. A fila acompanhou. Saíssem da trilha talvez se perdessem. A marcha retomou o andamento. Como se denunciasse a dicotomia entre o homem, natureza.

Canguera. Caminho no medo. Nascido em um cemitério de que restou apenas o nome, lenda. Histórias cantadas na solidão das paradas. Nas redondilhas das modas de viola. Tempo precioso ganho dos regaços na Parnaíba.

O tropeiro berrou o descanso. A Várzea Grande enfim. Antes o desencilhar dos muares.

Gente sisuda. Pálpebras caídas. A parecerem desatentos. Capatazes, peões. Arrastando ponchos, capas. Chapéus de feltro, abas largas. O sabre fácil no movimento da mão. À moda paulista. Caráter moldado nas trilhas. Nos passos medidos. Nos gestos. Tementes de Deus. Também da cobra venenosa. Da onça. Da tocaia de escravo. Do salteador.

Rancho. Farinha de milho, toucinho, feijão. Palanques das redes. Quando muito um jirau. Clarão de fogueira na serração opaca. Cachaça. Dedo de prosa. Das paixões, da lida. Depois o repouso. Olho aberto. Outro fechado. Corpo a reclamar da estrada arrastada. Da que estava à frente. Da manhã tão perto. Do dia começado na madrugada.

Nem se acomodaram, um tropel. Não prestaram atenção. Tanto o chega-e-sai daquele lugar. O vozerio alto do peão rude no manejo da tropa. O ajeitar descuidado do rancho. Acolhidas. Qualquer barulho era maior naquela solidão. Na escuridão profunda que tudo cercava. Noites iguais. Menos esta.

O mensageiro acompanhou o tropeiro desde Ipanema. Antes da Canguera seguiu em outra direção. Ordens dele. Por Parnaíba seria mais seguro para um só homem. Matutava isso junto ao fogo. Imóvel. Absorto. A luz trêmula das chamas urdia a barba às rugas da pele. Fisionomia, máscara ritual. O tempo calculado para a entrega em São Paulo precisava estar correto. Não permitiu espaços para outra coisa que não fosse a viagem. Segredo de vida ou morte.

Ouviu seu nome. Sussurro da névoa. Estranhou. Afastou-se do rancho em direção ao chamado. Mão no sabre. Entremeou pelas árvores. Conversa curta. Mesmo porque não tinha o hábito das palavras. Voltou ao fogo com um papel dobrado. Sujo da poeira. De mãos suadas.

Estrela. Sem tirar a pena do papel. O tropeiro reconheceu o desenho, código. Não havia aprendido a ler. Mesmo um bilhete tosco, meia dúzia de palavras. Podia imaginar o conteúdo. O deste não deveria ser diferente. Mas contrariava o sigilo. Deduziu a pressa implícita para uma solução. E ser analfabeto não o privava de talento para descobrir quem.

O capataz, última alternativa. Conhecia sua vida de peão. Menino, tinha aprendido rudimentos na escola dos jesuítas. Logo partiu com a tropa. Sereno. Confiável pela franqueza do rosto. Não teve outra vida. Mesmo quando o patrão mudou de rumo. Pelo tempo juntos ofereceu a tropa. Recompensa merecida. Recusou. Preferiu a vida solta. Uma ou outra viagem para costurar o bolso furado. Quem vê cara, não vê coração. Não tinha a auréola de santo.

O tropeiro aparentava apenas o que era. E todos acreditavam. Ao menos por ali. Mal sabiam do negócio. As mulas, ganho de outras empreitadas. Olhou o papel, o predestino. A esconder o infortúnio nas letras riscadas. Soubesse quem, o amanhecer poderia contar da tocaia covarde ali mesmo no terreiro. Sem qualquer preocupação com o corpo. O corriqueiro. As ordens seriam incontestáveis num jogo que não era seu. Um nome em vão. Muita coisa havia mudado. Precisava saber da escrita.

Parecia efêmera. Poeirenta. Um casario deserto ao longo da estrada. Os roceiros só vinham para as festas da igreja. Freguesia de Cotia. Vida agrária, primitiva. Ranço da província colonial. Saíram de madrugada. Serração a esconder. Carl Friedrich Philipp von Martius, Johann Baptist von Spix. Dois olhos observavam por uma gelosia.

Janeiro. O frio das noites a contrastar o verão dos dias. Umidade do ar. Chuvas repentinas, abundantes. Águas mornas. Calor insuportável. Tanto a esgotar aqueles homens. Gente da corte. Sem a rusticidade cobrada pelo sertão. Queriam logo estar na colônia alemã. Arredores de Ipanema. Alguém havia contado da exuberância da natureza por lá. Repouso para um fôlego. Deixaram o lento da tropa para trás. Sugestão do guia.

Português naturalizado. Fugiu dos franceses em Portugal. Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen acabou no Rio de Janeiro. Depois a Coroa o enviou para construir os altos fornos da Real Fábrica de Ferro de Ipanema em Sorocaba. Não apenas o ferro bruto. Artefatos, ferramentas. Mas também munições, material bélico.

O guia tinha jogado o pelego por perto. Foi até lá por ir. Puxou prosa. Assunto sem pé nem cabeça. Falou de pintadas, cevas, tiros certeiros. Sondou atrás do que pudesse decifrar o escrito. Com jeito pôs a conversa no rumo. Como a tropa. Conhecia o pau mandado. Analfabeto como ele. Alheio.

Não se mortificava em dilemas, remorsos. Considerava o assunto um mero negócio. Mas estava cansado. Queria um dar um paradeiro naquilo. A empreita das mulas prosperava. O comércio de São Paulo crescia. O ferro de Sorocaba era importante. E as cargas boas. Menos aquela. Lacrada pela palavra. Queriam saber o que era. Ouviam do bom contrato. O capataz sabia. Para ele um transporte, outro qualquer. Desconhecia os comprometimentos.

Perto os estrangeiros roncavam. Corpos moídos.

Mostrou o bilhete ao capataz depois de rodeios. Amizade de noites no breu do sertão. Solidão abrindo o peito. Confissões perdidas nos ermos. Todas. Mesmo assim vacilou. Porém a angústia venceu.

O peão decifrava cada sílaba. Depois as unia. Palavras. O tropeiro procurou ler os lábios. A desconfiança protegia naquelas bandas. Mas a luz das labaredas insistia em vacilar. Tremulava no lenho. Alternava sombras, confundia os movimentos da boca. Não conseguiu.

Ginge. Um frio percorreu a espinha de súbito. Fitou o infinito. Uma eternidade. Balançou a cabeça reprovando. Olhou de lado para os estrangeiros. Mas não teve coragem de encarar o tropeiro. Depois contou da escrita. Os alemães não podiam chegar a Ipanema. E se afastou quase sem respirar. Fronte baixa. Introspectivo.

O acaso havia traído o segredo. O comendador conhecia a trama. Apenas somou. Não interessava a demanda. Incomodava o tempo preciso para reestabelecer a dinâmica das influências no poder. Tinha Ipanema como leal à Coroa. Mas conhecia o coração de Varnhagen. Aventura, alma do aventureiro. Talvez. Ou talvez o alemão não soubesse mesmo.

Parnaíba. De bruços sobre a mesa da taberna. Corpo cansado. Cochilo inevitável depois do bucho cheio. Nada teria acontecido se a pressa não denunciasse. Junto o desleixo. Alforje nas costas. Entreaberto. Foi o que atraiu a curiosidade do taberneiro. Tentação a espichar os olhos. Reconheceu o monograma do sinete. Na ponta de faca descolou o lacre do papel sem quebrar. A filha leu. Depois colou. Grude grosseiro. Indiferente naquele mundo tosco.

O mensageiro acordou assustado. Tomou tento, seguiu para a capital. Mesmo sem estar refeito. Muito depois do outro. Quando saiu, o enviado do taberneiro já havia atravessado a aldeia de Baruerí. Mas dobrou ao sul. Ia tomar a trilha pelo rio Cotia. O Caiapiá até a Freguesia. Os olhos do comendador se estendiam longe. O medo também.

Prosa finda. Viu o capataz se achegar no pelego. Estava tenso. Sentia a presença do patrão. Incômodo permanente. Pressão traída pelo suor das mãos. Depois se voltou aos cientistas. Não conseguia atinar uma razão para o insólito. Encafifado. Perdido em suposições. Ambos faziam parte da corte. Do império. Eram obedientes à Dona Leopoldina. A atitude do comendador intrigava.

De repente o bote. Gesto silencioso. Certeiro. Preciso. A lâmina fez a degola. Quis impedir o jorro quente. Olhou as mãos ensanguentadas. O pavor da morte inevitável tomou sua expressão. Esticou os braços implorando socorro. Dobrou os joelhos, tombou. Como havia cometido tantas vezes. Sem compaixão. Frio. Morreu ao lado das cinzas mornas, fumarentas.

Os alemães haviam partido antes do clarear. Foram os primeiros. O tropeiro parecia dormir. Não havia luz suficiente. O reflexo da terra úmida pelo sereno se misturava ao do sangue vertido.

Restou a mancha. Uns lamentaram. Outros sequer isso. A rotina da morte não incomodava mais. Banalizada. Apenas outro acontecimento sórdido. Como tantos. Depois seria uma vala no pasto. O esquecimento. Ao lado do corpo, o bilhete roto. Pisado, enlameado. Pudesse ser lido, entenderiam.

O capataz assumiu. Nada mais natural. Fez-se dono por paga. Indiferente aos comentários. Às acusações veladas. Mas os peões confiavam naquele homem. Mesmo porque a truculência impunha. Depois importava o soldo. Seguiram o rumo, outro endereço. O destino estava perdido. Morreu com os segredos do tropeiro.

Boca do sertão. Festa da capela. Embriagues. Assassinato. Por um brilho. Bugre amarrado no tronco. Cão sarnento. Viver além, apenas por conta da piedade que nunca teve. O comendador ostentava a lei pela ausência da autoridade.

Mestiço, não escolhia o lado. Era discriminado por ambos. Perdido, arrastava-se atrás de uma identidade. Então teve a fidelidade comprada. Passou a pertencer. A troco da vida já conformada com a morte.

Da tropa para a comenda. Serviço braçal pela topografia das serras. Usou os muares até enriquecer. O bugre veio depois. Foi instrumento da conquista do poder. Pelo medo. Mais que pelo dinheiro. Jagunço impiedoso. A tropa que o capataz recusou serviu como paga. Por alimentar a força do tirano. As posses. Escrituradas no terror. Compensavam-se. Cumplicidade próxima ao parasitismo. O caboclo de vida consentida. Ainda que miserável. O latifúndio alimentado por mãos assassinas. Mostravam singularidades. Farinha do mesmo saco. Diferenças acordadas, tácitas.

Logo se apossou da sesmaria onde tinha seu sítio. Das que lhe confrontavam. Léguas e léguas. Depois se aproximou da corte. Distribuiu favores. Financiou futilidades. Então se deixou agraciar pela comenda em troca das dívidas. Nada que não estivesse ao alcance do dinheiro. Não tinha estamento, mas precisava do título. A proximidade dos poderosos importava.

Do sul carreavam notícias. A independência das Províncias Unidas do Rio da Prata. O Chile livre dos espanhóis. San Martin, Bolívar, Sucre. Coragem de tomar o destino nas mãos. A Inconfidência Mineira. A Confederação do Equador. O futuro apontado.

Conhecia a corriola que cercava o presidente da província. Tráfico de influências, corrupção política. Era o que mais sabia fazer. Naquela reunião tensa discutiram o cenário a se defender. Pouco importava o preço. Até que o imperador se fosse. E seria em breve. Napoleão, Waterloo. A meta era subtrair o quanto pudessem pelo tempo curto que tinham. Apoiar o sistema até onde ele se mantivesse.

Poder por prestígio, não por cargos ocupados. O sub-reptício a manipular. Do lado que fosse. Nada levava em conta o caráter.

Carta na manga. Sempre teve uma. Sempre quis todas. Estava atento aos boatos. Queria assegurar regalias qualquer que fosse o lado. Fez jogo duplo. Pé lá, outro cá. Acabou descobrindo o jagunço no meio daquela convulsão. Estranhou à princípio. Depois entendeu o papel da tropa. Jagunço, comendador. A cumplicidade de tanto tempo a esconder suspeitas. Estava sendo usado. Devia se aproveitar também.

Pisava em ovos. A notícia do taberneiro o levou a uma opção. O que não era do seu feitio. A tropa trazia munição para eclodir a revolta. Prematura às tramas da cambada voraz. Havia um acordo a ser cumprido.

Certo dia foi procurado. Recomendado pela discrição. Haviam usado seus serviços por conta do comendador. Quem indicou não sabia porquê. Quem estava a contratar desconhecia a pessoa. Ironia da vida.

Propuseram o negócio entre a cruz, a espada. Por prólogo contaram os sonhos. Omitiram os detalhes. Mas o que são detalhes perante o sonho? Mesmo porque sequer ouviu depois.

Boquiaberto. O outro lado da vida estava ali. Ao alcance de um sim. Pensava ter vivido tudo, dias ralos. Nunca o que as estrelas contavam ao corpo surrado. O que os versos sertanejos dedilhavam na viola. Usava o destino para justificar a derrota.

Quedou-se. Não deixou transparecer a emoção. Jeito ganho na faina rude. Então abriu as cartas. Não queria a chantagem da mentira a tirar-lhe a vez. Ficaram assustados. Desconfiados. Questionaram a traição. A cabeça do comendador na ponta do chuço. Discordou. Contou da gratidão quitada. Omitiu os horrores. Eram negócios. A lealdade nos tempos de uma parceria não morria depois. Preservou pelo silêncio. Foi engajado. Nem importou em ser apenas falta de opção.

Verdade, jeito singular da conquista.

Ser uma sombra estava a incomodar fazia tempo. Não por inveja, ambição. Odiou a incúria. Vida miserável. Espremida por mãos cruéis. O caminho. Que outro lhe restava para mudar? O discernimento apenas evitou que descartasse a memória. Por intuição. Para sobreviver. Pouco adiantou. Mas a morte chegou quando já era um rei.

O comendador perdeu a cautela. Poder, arrogância, impunidade. Assim parecia. Assim foi. Outros objetivos, outros métodos. Mudou de comportamento. Tanto que se sentiu muito acima daquele bugre. Instrumento de morte. De coação. Passado incômodo a se descartar. Talvez.

Havia trocado a truculência. Impedir assim o envio da munição não interessava. Lutariam. Seria exposto. A defesa da carga poderia precipitar os acontecimentos. O bugre sabia demais. Resolveu acabar com dois problemas.

A volta da tropa, estopim. Teria que resolver antes. Um mensageiro levantaria suspeitas se não procurasse o jagunço. Introduziu o guia entre os alemães. Que ardil melhor poderia haver para manter as suas posições dúplices. Assinou com a estrela. Código de cumplicidade. A mesma de outros bilhetes.

Capataz, caboclo dissimulado. Outra carta da manga. A da vez. Também tinha na estrela o segredo da morte. Há mais tempo que o jagunço. Desde as empreitadas pela serrania com o patrão. O guia seguiu o hábito. Desatento nas recomendações. Parvo. A figura eliminou a dúvida. Mais que as palavras. Já havia sido portador ao jagunço. Por analogia fez o mesmo. Entregou o bilhete a quem bem entendeu.

Continuaram a conspirar. Nada além de cochichos. Nada além de uma boa conversa em alemão. Nada além de uma notícia do lado espanhol.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Dragão de Jade

"Na terra seremos rainhas e de verídico reinar e sendo grande nossos reinos chegaremos todas ao mar" Desolación, Gabriela Mistral Avião. Parecia parado. Apenas um som de motor. Constante, monótono, longe. Ao lado uma mulher. Perfume suave, doce. Mãos delicadas, leves. Ligeiras no teclado do note. Escrevia, apagava. Repetidas vezes. Olhava de soslaio. Fone de ouvido. Nem ouvia a música. Olhos quase cerrados. Apertados, fingidos. Tinha o assunto, não a coragem. Mas precisava ser rápido. Restava menos de meia hora. A restinga da Marambaia se abria como num atlas. Logo o Santos Dumont. Ofereceu um café. Ela sorriu. Recusou sem tirar os olhos da tela. Cafeína. Estava tensa. Confessou a ele, a todos, a ninguém. Genérica, desatenciosa. Mal via a hora do desembarque. Mesmo assim ele se aproveitou. Tomaram o mesmo táxi. Sol cáustico. Caravana, o ladrar dos cães. Mercadores. O homem traindo o homem. Fila atada pelos passantes dos colares de ferro. Chagas do metal a ferir o cangote.

Uma Caixa de Botões

Mas de algum modo as pessoas  são eternas. Clarice Lispector Não havia herança. Apenas umas coisas pessoais. A sacola de costuras veio junto. Sabia o que continha. Coisas. A alquimia da perda prematura transformou-as em ícones. Devagar ia alinhando todas sobre a mesa. Cada uma mais sagrada que a anterior. Sentia a mãe por perto. A caixa de botões foi a última. Abriu o trinco com suspense. Ritual. Trouxe de criança. E a temeridade que o sagrado impõe. Ficou extasiada ante o tesouro. Como sempre ficou. Reconheceu as jóias. Uma a uma se encaixando num pedaço do passado. O indicador a revirar, o medo de ser espetado por um alfinete. Pegou alguns botões. Na palma pequena da sua mão o pensamento a carregou. Como quando criança. Um pequeno botão forrado. Tecido estampado, o primeiro ao qual se atentou. Pinçou-o entre o indicador e o polegar. Trouxe-o perto dos olhos no gestual de um ourives. Uma foto sépia. As duas à porta da loja de chapéus. A vitrine mostrando

O Portador

O cromeleque dos Almendres em Évora, umbigo da terra. Rastro do turbilhão. Comum. Não para ele. Tomava horas a olhar. Lisboa. Depois o Atlântico ao largo. Do convés mais alto viu a terra se afastar. Gávea se existisse. Topo da calota. Água, céu. Sem o desenho de uma paisagem. Apenas vento por todos os lados. Dias na imensidão. Longos. Santa Maria, Pinta e Nina. A espuma dos seus cascos ainda marcava.  Cromeleque dos Almendres. Concelho de Évora. Encosta voltada ao nascente, o oriente nos olhos. Quantos mil anos à espera do amanhecer de um solstício de verão. Talvez vã. Nada a considerar a hipótese de tudo aquilo ser descarte de uma civilização ida. Enfim, não era o dia. Não havia magia. Apenas a crença dela. O bastante para preencher. Pensativo, imaginava quem poderia ter pisado o mesmo chão que ele. Acabou por se juntar à multidão. Anônimo.  Descoberta acidental. Comentário no cromeleque. Uma tasca em Évora. Comida alentejana, bom vinho. Acepipes. A perdição nas sobremesas. Mesa do

A Professora

Em sua essência a vida é monótona. A felicidade consiste pois numa adaptação razoavelmente exata à monotonia da vida. Tornarmo-nos monótonos   é tornarmo-nos iguais à vida; é, em suma, viver plenamente. E viver plenamente é ser feliz.   Fernando Pessoa, in 'Reflexões Pessoais' 1941. Já não era tão menina. Quase dezenove. Pequena, franzina. Nada além. Cabelos negros, lisos, repartidos ao meio, rentes ao queixo. Moldura castanha para os olhos enormes, negros, assustados, a parecer preocupados com o que a vida estava a lhe trazer. Diploma de professora. Começo de carreira. A Sorocabana era o caminho entre o amparo da família e aquele cafezal. Quase quinhentos quilômetros da capital. Longe. Um dia ou mais de viagem. Vila pequena, graciosa. Palmital, se fosse ali. Mas ainda havia outros quase dez quilômetros além da vila. Numa charrete, no lombo de um burro, tanto fazia. Fazenda de café, Água da Canela. Espanhóis da Andaluzia. Dona Concepción e as filhas tod

O Inca

El joven Atahualpa, estambre azul,/ árbol insigne, escuchó al viento/ traer rumor de acero. Era un confuso/ brillo y temblor desde la costa,/ un galope increíble/ -piafar y poderío- de hierro y hierro entre la hierba./ El Inca salió de la música/ rodeado por los señores. Las Agonias-Pablo Neruda Descia. Rua fria de New York. Melhor, seguia a planura das ruas. Retas até onde os olhos podiam enxergar. O vapor do Metrô soprado das grades no chão criava a bruma. Costurava a diversidade. Babilônia. Ruelas, becos estreitos. Nódoas de umidade na cal da pintura. Verde água escorrida, reboco. Noites úmidas, pegajosas. Cômodos insanos. Mofo a arder as narinas. Janelas fechadas, tementes. Mercadores. Gente aos tropeços. Até o ocaso. Houvesse luz e Babilônia se prostituiria todo o tempo. Onde corresse a vida. Nas tabernas. Até o cerrar das portas. Corpos tomados pelas mesmas mãos da comida. Cheiro azedo da bebida entornada. Luxúria a soldo. Bacanal. Final de congestionamento.

A Pensão da Rua Jandaia

Alma escancarada. Tênis encharcado. Apenas um movimento perdido no cenário desolado. Ninguém a condescender. Sequer a compaixão. Noite. Silêncio urbano. Inverno. Mesmo às vésperas da primavera. Chuva fina roubando a proteção das marquises. Vento perdido pelos vãos dos prédios. Ar denso. Desolação. Perspectiva da Avenida Paulista nas luminárias do posteamento. Diluídas no reflexo do asfalto molhado. Esticando a distância. Iludindo. Cenário irreal. Como foram irreais aqueles momentos. Aquelas palavras. Andar por inércia. Pensamento estanque por um negrume. Uivo agourento a preencher o breu. Do nada. A bloquear. Açoite no corpo. Vulto. Então viu seu vulto a vagar. Para o inferno não basta a morte. E há um só caminho. Curto, acre, cáustico. Talvez. Pior o frio desolado da desesperança. Fosse purgatório se poderia negociar. Mas o delírio da perda impõe extremos. Inoculado o veneno, o insuportável assoma. Depois a trilha maldita. Paisagem de escombros. Trama de raízes a tranc

Uma Certa Senhora

"Bendito seja eu por tudo o que não sei, gozo tudo isso como quem sabe que há o sol" Fernando Pessoa Ava Gardner. Vestido negro. Justo. Um pouco acima dos joelhos. Decote sem alças. Jóia no colo. Designer caro. Sapatos nem altos nem baixos alongando o perfil. Cabelos presos deixando a impressão de algum desarranjo. A quebrar a figura perfeita. Pele delicada. A maturidade plena no corpo. Olhos morenos de jabuticaba. Mulher pintada por Goya. Rosto sereno. Nu. Parecia não dar conta da vida transbordando no corpo da mulher. Elegância. Ele fazia questão. Ela ia além. Sabia o que estava provocando naquela noite. E das consequências. Mas não podia deixar de sentir. O auge dos seus trinta e tantos anos carregava a juventude insolente. Ele não atinava, não entendia isso. Mesmo a mais discreta roupa trazia graça àquele corpo. Natural, inevitável. Ao entrar foi medida. Alto a baixo. Olhares traíram olhos. Sentou-se. Cruzou as pernas bem torneadas. Mas

O Olhar

                                  Chuva. Água permeando nos cabelos ralos. Incomodava. Parou à beira da pista. Caminhada longa, a parecer sem fim. Passos mecânicos. A cabeça trazia o inferno. Pensava em círculos sem espaço para concluir. Nem trégua. Um tormento não substituiu o outro. Foi somado. Clarão da vila no topo. Luzes minguadas, opacas na névoa. O negrume entre eles. Distância em olhos ansiosos a parecer maior. Medida entre a resignação, a obstinação. Não bastasse, a rodovia. Um fio de lanternas vermelhas, muralha. Parecia eterna. De súbito atravessou pelos restos barrentos do aguaceiro.  Estrada vicinal. Asfalto remendado. Traiçoeira. Então o acidente. No deserto daquelas horas restava a sorte. Iluminasse um farol, o corpo sem vida na lama. Esconso. Sangue no batom carmim. Escorriam juntos. Uma jaqueta cobria o peito desnudo.  A pensão avançava na calçada antes da rua se perder na escuridão. Formava um canto. Passou por ela ressabiado. Rente à parede, furtivo. A políc